Por Thiago Amparo
O olhar de policiais negros complexifica debate, mas confirma que, sem justiça, não há paz
Quando levei meus alunos para visitar a Academia de Polícia Militar Barro Branco em 2019 em São Paulo, num curso sobre estado de direito e polícia, fomos bem recebidos. Uma aluna negra –a única da sala de aula, diga-se– levantou a mão e perguntou ao gentil comandante, branco: “e o racismo por parte dos policiais?” Sem pestanejar, a resposta foi algo nestas linhas: “não há”. O gentil comandante acrescentou que há comandantes negros na corporação.
Aqui, confunde-se corpos negros fardados com ausência de práticas racistas. Racismo mora nas estruturas que silenciam o debate sobre a máquina de moer carne que é a violência policial. Racismo mora, também, na forma como a farda orgulha policiais negros, ao mesmo em que silencia sobre sua própria negritude.
O olhar de policiais negros complexifica o debate sobre a seletividade racial da atuação policial. Complexifica, mas confirma que sem uma mudança institucional profunda, não haverá fim à violência policial.
Pesquisa recém-lançada com coordenação de Jacqueline Sinhoretto (UFSCar) joga luz sobre estas questões. O estudo “Policiamento ostensivo e relações raciais” entrevistou policiais em SP, MG, RS e DF. Escutemos o que diz o corpo negro de farda.
Segundo a pesquisa, policiais negros defendem, de um lado, que o método de policiamento ostensivo –que gera em maior número prisões em flagrante e letalidade policial entre negros (pretos e pardos)– é “discriminatório e violento” e, de outro, policiais negros possuem orgulho de uma corporação com negros no seu alto escalão e que permite sua ascensão social. Policiais negros relataram aos pesquisadores o receio que sentem quando são parados, durante a folga, por colegas policiais dirigindo um bom carro.
Esta dupla consciência – do corpo negro fardado –levanta questões importantes para que entendamos como enfrentar o racismo nas polícias. Desmantelar racismo como prática policial passa por envolver policiais negros na reflexão sobre o silenciamento institucional do racismo. Quando os protestos negros contra violência policial eclodiram em Ferguson e Baltimore, nos EUA, entre 2014-5, debateu-se o papel de policiais negros frente ao racismo policial.
No livro “Hands Up, Don’t Shoot”, Jennifer E. Cobbina elenca duas hipóteses: mais policiais negros poderiam diminuir conflitos (tese da “accountability comunitária”), ou, alternativamente, policiais negros, como brancos, percebem certos grupos étnico-raciais como perigosos (tese da ameaça minoritária). O que os protestos antirracistas nos ensinaram é que ambas as teses são insuficientes para explicar a visão de policiais negros, como aponta o livro de Cobbina.
Subcultura policial nos oferece outras e, quem sabe, melhores respostas. Instituições policiais são pouco permeáveis a debates sobre racismo e, portanto, mesmo policiais negros são revestidos de um código de silêncio sobre o tema. A pesquisa da UFSCar mostra que policiamento ostensivo se baseia em grande medida no tirocínio policial. Ao estudá-lo, policiais pouco debatem as visões racistas que as práticas de identificação da figura do criminoso reproduzem.
Em agosto de 2020, estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública nas redes sociais de policiais mostrou que racismo sequer é um tema debatido publicamente entre PMs em suas redes, e entre policiais civis o tema aparece em apenas 5% dos casos. Decisão histórica da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em outubro deste ano, ordenou que polícias devem ter protocolos que determinem critérios objetivos, não discriminatórios, de abordagem.
Desde sua gênese como forças atreladas ao poder colonial no século 19, forças de segurança caminham ao lado do poder, reforçando-o, com maior ou menor grau de autonomia profissional. Combater o racismo requer por parte de policiais negros compreender o corpo negro por baixo da farda, tão negro quando o corpo estendido no chão. Há aqui algo de disruptivo e, portanto, humano.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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