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A prisão do deputado Daniel Silveira e os paradoxos processuais

A prisão do deputado Daniel Silveira e os paradoxos processuais

Por Aury Lopes Jr., Janaina Matida, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Marcella Mascarenhas Nardelli e Alexandre Morais da Rosa

Vamos recordar que lá no início de 2019, diante dos ataques ao STF e divulgação de fake news, foi instaurado — de ofício — pelo ministro Dias Toffoli o Inquérito 4781, designando o ministro Alexandre de Moraes como autoridade investigadora. E aqui começamos com o jogo dos (no mínimo) sete paradoxos processuais:

— Paradoxo 1: inquérito instaurado de ofício (violação clara do sistema acusatório) e com a designação de um ministro (juiz natural?) que passou a determinar diligências de ofício, com buscas e apreensões, quebras de sigilo bancário, fiscal etc., ordens judiciais contra sites de notícias e redes sociais, e até mandados de prisão, tudo isso sem qualquer pedido do MPF ou da autoridade policial, no mais típico protagonismo judicial inquisitório. Não tardou para que a PGR Raquel Dodge fizesse uma manifestação alertando da violação escancarada do sistema acusatório constitucional e postulando o arquivamento, que não foi acolhido (!). Interessante como o STF insistiu — e insiste em investigar, mesmo quando o acusador já disse que não concorda e não iria acusar. Mais do que isso, ainda que sem a competência para tanto, o STF teima investigar o que depois irá julgar (?), como veremos a seguir.

— Paradoxo 2: quando um ministro ou seus familiares são vítimas de um crime, a competência para apuração das infrações é da Polícia Civil ou da Federal, em paralelo com o Ministério Público. Jamais pode o próprio STF avocar com base em regra regimental uma competência não existente na Constituição da República (artigo 102). E é nesse ponto que se insere o paradoxo dentro do paradoxo. O Regimento Interno do STF atribui a prerrogativa ao presidente de instaurar inquérito ou de designar a atribuição a outro ministro se ocorrer infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal que envolva autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição. Fora aplicado ao caso o parágrafo 1º, que dispõe que “nos demais casos” pode o presidente proceder da mesma forma ou “requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”. No entanto, a expressão “demais casos” deveria ser entendida como aqueles que não envolvam autoridade ou pessoa sob jurisdição do STF, mas que ainda assim ocorram nas dependências do tribunal. Entender como hipótese de contempt of court e a partir daí considerar legítima a atuação da corte seria romper com a normatividade em nome da conveniência, além de escapar à lógica de aplicação do instituto segundo a dinâmica da common law. O Judiciário não pode se defender por si, aliás, a proibição de ser juiz em casos em que se é vítima é um dos pilares do Estado democrático. Logo, fazer subir a investigação não sendo competente para conhecer da ação penal é um profundo equívoco. A futura ação penal, se for o caso, não seria da competência para julgamento do STF.

— Paradoxo 3: esse inquérito inquisitório sobreviveu e seguiu aberto, representando uma fishing expedition defensiva do próprio STF, que parece não acreditar e não confiar nas instituições as quais a Constituição atribuiu o poder de investigar, ou seja, Ministério Público e Polícia Judiciária.

— Paradoxo 4: em fevereiro de 2021 surge o inusitado mandado de prisão em flagrante expedido pelo ministro Alexandre de Moraes contra o deputado federal Daniel Silveira. E aqui um parêntese: nenhuma dúvida sobre a gravidade e reprovabilidade desse ataque absurdo a instituições e pessoas, que merece total repúdio e necessária apuração e punição. Depreciamos tudo o que ele representa, mas não se combate fascismo e prepotência com autoritarismo e ilegalidade. A insólita decisão do ministro Alexandre de Moraes (também vítima dos crimes contra a honra perpetrados) de determinar a prisão em flagrante gerou intenso debate. De um lado aqueles que sustentam não se tratar de crime permanente, mas, sim, um crime instantâneo de efeitos permanentes. Nesse caso, a prisão em flagrante é ilegal ab initio. De outro, aqueles que admitem a tese do ministro — de que existe crime permanente — e, portanto, a teor do artigo 303 do CPP, haveria uma situação de flagrante igualmente permanente. Finalmente, aqueles que sustentam que, embora seja crime instantâneo, a prisão ainda se qualificaria justificadamente como em flagrante pois realizada “logo após”, tal como previsto na disposição legal. No entanto, mesmo reconhecendo plausível este entendimento é preciso atentar para o fato de que não foi essa a fundamentação concretamente empregada pelo ministro Alexandre de Moraes. Sobre a decretação de ofício, cabe sublinhar que, como não se tratou de prisão preventiva, não haveria nada de ilegal, até porque, segundo o artigo 301 do CPP, qualquer pessoa do povo pode e as autoridades devem prender quem estiver em flagrante delito.

— Paradoxo 5: um deputado federal apenas pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável, sendo o rol desses crimes estabelecido pela Constituição. Aqui o ministro Alexandre fez um contorcionismo jurídico invocando o artigo 324, IV, do CPP e desconsiderando que ali se prevê uma situação de inafiançabilidade (pois se cabe prisão preventiva e ela é necessária, existe uma incompatibilidade lógica em relação à concessão de fiança) que não se confunde com o rol de crimes inafiançáveis previstos na Constituição (e que não se encaixavam no caso em questão).

— Paradoxo 6: a prisão em flagrante não pode manter alguém preso por si só, sem a decretação de prisão preventiva ou temporária. É uma medida pré-cautelar, precária (tanto que pode ser efetivada por qualquer pessoa) que vige até a apresentação na audiência de custódia. Hoje, o deputado está submetido a uma prisão absolutamente ilegal, pois flagrante não é um título prisional válido para prolongar-se assim no tempo.

— Paradoxo 7: por ser um deputado federal, imprescindível a validação da prisão pela Câmara dos Deputados (artigo53, §2º, da CF). Por ser um preso ou detido, imprescindível ainda a audiência de custódia. Mas qual a ordem desses atos? Pela lógica, primeiro a Câmara dos Deputados deve validar ou não a prisão em flagrante e, somente após, se validada, deve-se seguir a realização da audiência de custódia, de modo a que se discuta e se decida sobre a prisão preventiva (se pedida) ou a substituição por medidas cautelares diversas (artigo 319). Tudo, contudo, foi feito às avessas.

Foi marcada uma audiência de custódia que não cumpriu com a sua função, a qual, ao mesmo tempo, provou-se inútil, pois a prisão ainda não havia sido avalizada pela Câmara dos Deputados. A audiência de custódia serve para avaliar — em contraditório e com oralidade — dois aspectos básicos, desenhados no artigo 310 do CPP: analisar se o flagrante é legal (homologar) ou ilegal (relaxar a prisão). Se legal (e o plenário do STF havia se manifestado nesse sentido, não passou de um faz de contas, nesse caso), obrigatoriamente deveria ter analisado se cabível a prisão preventiva (ou temporária), desde que existisse pedido expresso (nada de conversão de ofício, ilegalidade que está superada). Então caberia ao juiz a verificação da presença/ausência de fumus comissi delicti e periculum libertatis para — se presentes —, em primeiro lugar, substituir pelas medidas cautelares constantes do artigo 319, quando adequadas e suficientes, ou, na hipótese de que incabíveis estas cautelares diversas, apenas em último caso (verdadeira ultima ratio), então, passar à decretação da prisão preventiva.

Os paradoxos, que a esta altura já são abundantes, não param por aqui.

O PGR já ofereceu no STF, em tempo recorde e nunca visto, a denúncia contra o deputado federal. Mas compete ao STF processar e julgar, já que o réu tem prerrogativa de função? Não! Conforme entendimento consolidado pelo próprio STF na AP 937, somente será julgado no STF se o crime for praticado durante o exercício do mandato e tiver relação com o exercício das funções, isto é, propter officium. E, nesse caso, a própria denúncia já ofertada no STF afirma categoricamente que não há imunidade material pelas palavras porque as declarações dele não têm relação com o mandato. Em todos os casos similares, diante da ausência da prática de ato vinculado ao cargo, o STF declinou a competência para o primeiro grau.

Inclusive, se ele renunciar antes de encerrada a instrução (como já se cogitou na mídia), não haverá perpetuatio jurisdictionis, pois outra criação do STF na AP 937 é exatamente esta: a partir do princípio da atualidade do exercício da função, se ele for cassado ou renunciar antes de encerrada a instrução, o feito deverá ser redistribuído para o primeiro grau, pois o STF não julga ex-deputado.

Enfim, além de todos esses atropelos, o STF ainda terá de engolir o entendimento restritivo da prerrogativa que ele mesmo criou, para poder julgar esse caso em que seus ministros são vítimas. Um casuísmo absurdo, autoritário e preocupante. O respeito às regras do jogo e do juiz natural é fundamental. É fácil defendê-las para quem gostamos, mas o compromisso com a democracia impõe a sua defesa principalmente em favor daqueles de quem não gostamos. Não custa lembrar: “democracia seletiva” não existe.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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