Resta saber qual órgão terá coragem de aplicar a lei e cortar na própria carne
A preocupação com a cobertura jornalística acrítica da Lava Jato já foi muito bem externada em dois textos escritos por duas ombudsman desta Folha, Paula Cesarino Costa (“Um jato de água fria”), e Flavia Lima (“A lava Jato e a imprensa”).
A grande questão é como equilibrar a liberdade de imprensa de um lado, que não merece qualquer relativização, com a forma como algumas autoridades inescrupulosas usam os jornais para transformar meras suspeitas contra alguém em culpa consumada, causando danos irreparáveis não só a indivíduos, mas ao próprio país. Cito, propositalmente, exemplos diferenciados.
No dia 17 de maio de 2017, o grupo Globo divulgou que, em conversa gravada por Joesley Batista, o ex-presidente Michel Temer (MDB) teria avalizado o pagamento pelo silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha.
A leviandade vai além. Em abril de 2017, a revista Veja publicou uma matéria de capa informando que, em delação premiada, à qual a revista teve acesso com exclusividade, um executivo da Odebrecht teria revelado a existência de uma conta bancária em Nova York ligada ao deputado Aécio Neves e movimentada pela sua irmã, Andrea Neves.
No dia 9 de agosto de 2019, a Procuradoria-Geral da República, já na gestão de Raquel Dodge, em documento oficial, atestou que o nome dela nunca foi citado em qualquer delação feita pelo executivo. A delação à qual a Veja afirma ter tido acesso com exclusividade simplesmente nunca existiu. Não existia a delação, a acusação, a conta bancária, nada. Ainda que sem nenhum documento que a comprovasse, a acusação, inexistente, foi capa da revista.
Agora é a vez do filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Fábio Luís. Documentos esparsos e fora de contexto são vazados propositadamente para embalar a opinião pública em julgamentos tão precipitados quanto equivocados.
A estratégia é a mesma de sempre. Buscar no calor da opinião pública o combustível artificial para subsidiar medidas espetaculosas, medidas que apenas pela força dos elementos do processo não teriam condições de prosperar. E com o Judiciário colocado de joelhos pela pressão popular, as ilegalidades ficam mais difíceis de serem anuladas pelos tribunais. É a receita que deu certo por muito tempo, e sua utilização foi admitida em artigo pelo próprio personagem principal da Operação Lava Jato, o hoje ministro Sergio Moro.
É o que se chama de publicidade opressiva do processo penal, já objeto de regulamentação legal em diversos países, como Inglaterra e França.
No Brasil, não há mais dúvida de que a conduta é crime previsto no artigo 38 da lei sobre abuso de autoridade. Resta saber qual o órgão de persecução penal terá a coragem de aplicar a lei, cortando na própria carne.
Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo.
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