Desde sua criação, em 1891, a composição do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido uma reprodução do racismo patriarcal, que naturaliza o fato de que nunca tivemos uma ministra negra nomeada para a Suprema Corte brasileira. Ao longo da sua história, foram três ministros negros, todos mineiros: Pedro Lessa (1907-1921); Hermenegildo de Barros (1917-1931); e Joaquim Barbosa (2003-2014). E três mulheres, todas brancas do Sul/Sudeste: Ellen Gracie (2000-2011); Carmen Lúcia (desde 2006) e Rosa Weber (desde 2011).
Além disso, após a Constituição de 1988 – primeira a estabelecer o princípio da igualdade material, inclusive com a redução das desigualdades regionais -, das 27 pessoas nomeadas para integrar a Corte, apenas três foram nordestinas, nenhuma delas mulher. Os obstáculos interseccionais perpetuados pelo racismo patriarcal fazem com que homens brancos tenham 8,2 vezes mais chances de se tornarem juízes e 37 vezes mais chances de se tornarem desembargadores do que mulheres negras (Justa — Gênero e Raça, CNJ, 2018).
Essa invisibilização faz com que juristas negras sequer sejam mencionadas para as duas vagas que surgirão para o STF, ainda este ano. É como se houvesse uma sucessão necessária a impor, por meio do apagamento das mulheres negras, a nomeação de um homem branco — ou talvez até negro, mas não uma mulher, muito menos negra — para a vaga do ministro Lewandowski, em maio; e de uma mulher branca para a vaga da ministra Rosa Weber, em outubro.
Em 8 de janeiro — uma semana após a posse do presidente Lula para o seu terceiro mandato —, o Brasil assistiu estarrecido à invasão e à depredação das estruturas físicas dos Três Poderes, por movimentos antidemocráticos. O plenário do STF — palco de importantes decisões em defesa da Constituição e da Democracia — foi destruído pelos golpistas.
Passado o estado de estarrecimento, a indignação determina a responsabilização dos criminosos. Para além disso, é preciso pensar nas medidas de reconstrução da Suprema Corte. Não apenas nas suas estruturas físicas, mas também simbólicas, principalmente, na sua composição que – para promover efetiva justiça pluriversal – deveria refletir a diversidade da sociedade brasileira, rompendo com os pactos de privilégio sempre (im/re) postos.
A representação da diversidade do povo brasileiro não pode se limitar à imagem de entrega da faixa presidencial a Lula. Ela precisa estar espelhada no Congresso Nacional, no Poder Executivo, no Supremo Tribunal Federal, enfim, em todas as instituições democráticas, sob pena de serem, elas próprias, exemplos antidemocráticos e de manutenção das desigualdades.
Pensando nessa inarredável missão de democratização da própria justiça, um nome que tem despontado entre os movimentos negros, notadamente o de Juristas Negras, é o da promotora de justiça baiana Lívia Sant’Anna Vaz, mulher negra e nordestina. Nomeada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na edição Lei & Justiça, Lívia é pesquisadora, doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela FDUL, além de ser escritora com reconhecida atuação em defesa dos direitos humanos e pela promoção da igualdade.
Seu nome aparece ao lado dos de outras juristas negras, como a advogada Vera Lúcia Santana de Araújo, que compôs a lista tríplice do TSE, em 2022, e a prof. dra. Dora Lúcia Bertúlio, procuradora da UFPR, reconhecida por seus estudos sobre Direito e relações raciais no Brasil. A magistratura negra também está representada, com a juíza de direito, Flávia Oliveira, do TJSP.
Sim! Juristas negras existem e precisam ser consideradas para assumirem as vagas do STF e de outros tribunais brasileiros. Como Lívia Vaz diz: “Não são as mulheres negras que precisam da academia jurídica e do sistema de justiça”; antes são essas instâncias “que precisam das mulheres negras” (JOTA, 2020). Sem as mulheres negras — maior segmento social da população brasileira — não se pode falar numa justiça para todas as pessoas.
Se — como recorda Sueli Carneiro a estrutura racista e patriarcal impõe às mulheres negras uma espécie de asfixia social, nossa força ancestral segue firme em busca de efetiva igualdade. Pois, se “todas as mulheres são brancas e todos os negros são homens” (SMITH, et al, 1982), algumas de nós têm coragem!
Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense.
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