Definir uma ciência por meio de seus dados seria definir a física como ciência da leitura métrica, ou a biologia pela contagem de formigas. Nenhuma ciência se define por meio de dados. No direito, o uso de dados deve ser mais parcimonioso ainda, porque uma indagação do tipo “quantas pessoas tiveram seu recurso provido no último ano”, para saber se o trânsito em julgado é o momento justo de iniciar o cumprimento de uma pena, não colherá um dado da natureza, mas uma série decisões humanas tão sujeitas a erro quanto qualquer outro ato humano.
Ainda assim, alguns dados são importantes para ajudar a analisar o sucesso ou insucesso de algumas políticas públicas, como quando nos colocamos a analisar índices de violência ou criminalidade. O que faz o número de homicídios cair ou subir? Há quem sustente, por exemplo, que os homicídios caíram nos últimos vinte anos em São Paulo porque o monopólio do tráfico nas mãos do PCC eliminou a guerra de facções. Outros atribuem a redução à menor circulação de armas, e outros dirão ainda que foi por causa das bem sucedidas políticas sociais e de segurança pública de diversas gestões dos governos estadual e federal.
Como estamos no terreno da política, e a política vem sempre acompanhada de certa dose de ideologia, é comum que cada um queira acreditar na hipótese que melhor se encaixe nas suas opiniões pré-formadas sobre o tema ou até mesmo em outros interesses legítimos . O fato é que nunca teremos certeza de qual foi a verdadeira causa da queda do número de homicídios em São Paulo. O mais provável é que as três causas juntas tenham ajudado a melhorar o índice.
Causa estranheza, portanto, quando, ao se despedir do governo, Sérgio Moro tenha creditado a queda do número de homicídios no último ano à sua política de segurança pública à frente do Ministério da Justiça.
A qual medida do governo federal o ex-Ministro credita o pretenso sucesso? O tal do pacote anticrime mal entrou em vigor, então sabemos que não é a ele que o Ministro tributa o êxito.
A comemoração do Ministro acaba soando contraditória para quem sempre defendeu que a principal causa da criminalidade no Brasil era a legislação leniente e branda demais. Moro foi um entusiasta das dez medidas contra a corrupção, que era contra a corrupção no nome, mas na verdade visava um endurecimento do sistema penal como um todo, leia-se mais poder aos agentes da repressão penal, e menos direitos aos suspeitos, investigados, ou acusados de crime.
Moro também é um ferrenho defensor da prisão em segunda instância, posição que acabou derrotada no julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade 43, 44 e 54 no STF, no final do ano passado. Uma das mentiras que se contou na época era que, com a decisão do STF, milhares de assassinos, estupradores e delinquentes da pior espécie seriam soltos. Mentira, porque a decisão do STF não acabava com a prisão preventiva, mas apenas com a prisão automática de um condenado qualquer em segunda instância.
A tragédia anunciada não se confirmou. Pelo contrário, o Ministro agora vem a público para dizer que neste período os índices de homicídio não só não aumentaram, como diminuíram. Assim como ocorreu em São Paulo, podemos até creditar a redução dos índices nacionais de homicídio a fatores diversos. Esta diminuição, entretanto, coloca sérias dúvidas sobre a tão propagada ideologia punitiva do “todo poder ao endurecimento da lei penal”, e quanto a isto não há a menor dúvida.
Ou talvez o dado apresentado por Moro venha a corroborar aquilo que Darrel Huff demonstra no livro “Como Mentir com Estatísticas”, ou seja, que dados podem ser manipulados para sustentar qualquer tese.
Se no terreno das políticas públicas os dados podem até auxiliar a encontrar soluções que melhorem a vida em sociedade, no terreno da justiça, melhor continuar apostando na ciência do direito e no respeito estrito aos direitos e garantias constitucionais.
Seja como for, na imensa dificuldade de comprovar uma relação de causa e efeito destes dados e estatísticas com medidas concretas de sua breve passagem pelo Ministério da Justiça , Moro segue sem legado e sem “marca de gestão”.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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