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A ruína dos mitos e segurança jurídica no pós-pandemia

A ruína dos mitos e segurança jurídica no pós-pandemia

Por Pablo A. de Souza e Rodrigo S. Siqueira Júnior

Apesar do sem-número de vidas brasileiras perdidas durante a pandemia da Covid-19, dados econômicos recentemente publicados revelam que também não “salvamos a economia”. Aproximadamente nove milhões de pessoas saíram do mercado de trabalho do primeiro para o segundo semestre do ano de 2020 [1]. A renda do país foi consideravelmente afetada, inclusive em razão da massa de vidas perdidas [2].

O discurso reacionário que responsabilizou as medidas de isolamento pelo impacto econômico sofridos pelo país, desresponsabilizando o governo federal por sua falta de coordenação e dogmatismo econômico, lembra a turba que, no passado, pediu a morte de grandes empresas do país pelo “envolvimento em escândalos de corrupção” [3]. À revelia das alternativas propostas pela comunidade jurídica e econômica hoje e à época [4].

Embebecidos de irracionalismo e ódio com evidências científicas, os casos da “lava jato” e a política de combate à pandemia exercida pelo governo federal revelam que o país precisa se desfazer de seus mitos, suas histórias de heróis e algozes para retornar à realidade e lidar com os desafios, agora acentuados pela pandemia da Covid-19, com pragmatismo e racionalidade.

A crise sanitária da Covid-19, segundo analistas — agravada pela abordagem desconcertada do governo federal — produziu uma grande mortandade empresarial (aproximadamente 700 mil empresas encerraram suas atividades) [5], com consequente impacto na arrecadação fiscal, endividamento e desemprego.

Impactou as relações contratuais em geral, com pedidos de revisões entre entes privados, reequilíbrio econômico-financeiro com a Administração Pública. Quebras sucessivas de expectativas entre os agentes econômicos que obrigaram constante reorganização e planejamento por parte das empresas, muitas vezes desprovidas de meios para lidar com a variação de oferta e demanda impostas pela pandemia e seus efeitos [6]. Em síntese, o vírus ampliou, riscos, contingências e incertezas, tornando o ambiente mais hostil à atividade econômica e concentrando os mercados.

A elevada capacidade ociosa e a queda da demanda doméstica, — intensificada com a redução e fim do auxílio emergencial [7] — podem sugerir: 1) a necessidade de estímulos econômicos via investimento público para equilibrar as contas públicas no médio prazo — dinamizando a economia e estabilizando a trajetória do indicador dívida/PIB, para ganho de confiança; 2) que o setor privado terá baixa propensão ao investimento, constrangido pelos riscos advindos da situação pandêmica.

O cenário indica que algum investimento público será necessário, na forma direta ou creditícia, e que o risco para o investimento privado precisa ser reduzido para a retomada do crescimento. É no segundo ponto que o presente ensaio pretende incidir.

Do ponto de vista teórico, dado que os condicionamentos institucionais determinam as margens de operação das organizações, fomentando ou inibindo a atividade produtiva [8], é imprescindível que o arcabouço jurídico que regula a atividade econômica seja previsível e estável, para o estímulo a tomada de risco inerente a economia de mercado, mas acentuada pela pandemia.

Nesse sentido, a avaliação e correção do legado da “lava jato”, enquanto caso paradigmático do estado atual da nossa política anticorrupção, pode contribuir para a superação do quadro econômico pós-pandêmico. Oferecer segurança jurídica é imprescindível, por exemplo, a setores como o da infraestrutura — profundamente afetado pela “lava jato” a partir de 2014 —, que, de conservadores a progressistas, se apresenta como importante alavanca da retomada econômica, com grande potencial de geração de emprego e impacto social.

As consequências já quantificadas da inquisição em nome da “moralidade administrativa” — autoimagem da operação —, desprovida de um conjunto de práticas e instituições jurídicas que preservassem a empresa em seus interesses sociais legítimos, vão desde o impacto de 2,5 pontos percentuais do PIB (R$ 142,6 bilhões em valores nominais) em 2015 [9], mais da metade da variação negativa do indicador naquele ano; ao corte de 60% dos postos diretos de trabalho das empresas investigadas pela “lava jato” após três anos de operação [10], impactando a formação bruta de capital fixo brasileira na ordem de 5% ainda em 2015, dois anos após o deflagrar da operação [11], apeando a geração de riqueza futura, empregos provir e arrecadação ao erário.

O impacto da desnaturação de competitivas empresas nacionais, exportadoras de serviços de construção pesada, como Odebrecht, que, em 2015, empregava trabalhadores em 27 países [12], prolonga-se no tempo, cumula-se e é de difícil mensuração. Um lamentável exemplo é a paralização de obras como a do Comperj (à época conclusa em 80%).

Seja bradando pelo aniquilamento empresarial de empresas geradoras de riqueza e empregos ao país e que, declaradas inidôneas, são inviabilizadas enquanto unidades produtivas; seja esbravejando contra medidas sanitárias que preservaram nosso sistema público de saúde em meio a uma pandemia global, o culto a mitos políticos — juiz ou capitão — tem dado sustentação à terra arrasada no país [13].

Para o pós-pandemia, é preciso aperfeiçoar nosso sistema jurídico a fim de oferecer previsibilidade e racionalidade ao planejamento econômico, livre de autoflagelos e “torquemadas” ciosos por protagonismo.

Ainda que a insegurança jurídica seja constante da práxis administrativa, a manutenção de um grau mínimo de segurança é fundamental para o crescimento econômico. Segundo o jurista Rafael Valim, a segurança jurídica é um princípio que se subdivide em dois eixos teóricos: a) a certeza, que se relacionada à previsibilidade do direito perante os indivíduos, que devem saber de antemão: a-1) quais normas incidem sobre determinada conduta e a-2) quais as consequências jurídicas que emanarão quando conduta prevista na norma ocorrer; e b) a estabilidade, que impede que relações jurídicas válidas sejam passíveis de serem constantemente alteradas [14].

Em regra, o setor de infraestrutura se caracteriza por contratos de longo prazo e custo de capitalização elevado. A celebração e execução dos contratos demandam um ambiente de negócios que ofereça incentivos e segurança aos agentes econômicos, notadamente quanto à previsibilidade, reduzindo a margem de incerteza para o investimento. Agentes econômicos privados que investem em infraestrutura, caracteristicamente, precisam ter algum nível de certeza quanto ao cumprimento dos contratos [15]. A insegurança jurídica que ronda a estabilidade do instituto do acordo de leniência anticorrupção advinda do acotovelamento dos órgãos de controle — em notória disputa de protagonismo no contexto da “lava jato” — consiste em importante aspecto nesse sentido.

A sanção administrativa que declara a empresa inidônea pode inviabilizar negócios que operam na construção pesada e em contratos de infraestrutura. A maioria, senão a totalidade dos contratos do ramo, é celebrada com o poder público, de modo que, destituída a sua capacidade para celebração de contratos com o Estado, está decretada a “pena de morte” da empresa. Não sendo possível celebrar um acordo de leniência em tempo, a morte é anunciada e lenta.

É oportuno dizer que, independentemente da instituição da responsabilidade objetiva na Lei Anticorrupção ser concebida como um incentivo à adoção da cultura de integridade pelas empresas, tal instrumento jurídico vai de encontro ao moderno entendimento do direito societário, que atribui a pessoa jurídica o aspecto de ente autônomo em relação a sócios, administradores e prepostos [16].

As sanções presentes no referido diploma servem — em tese — de incentivo à celebração de acordos de leniência por parte dos gestores das empresas acusadas, tendo em vista os benefícios que acompanham sua celebração, bem como os constrangimentos impostos de não fazê-lo.

Um dos benefícios previsto no §2ª do artigo 16 da Lei 12.846/13 é a isenção da pena de proibição de contratar com o poder público. A responsabilidade objetiva, que responsabiliza a empresa por atos de qualquer indivíduo que aja em seu nome e que em virtude destes se beneficie, aliada às graves consequências da penalidade de inidoneidade para o funcionamento das empresas, fazem o acordo de leniência verdadeiro “salva-vidas” da atividade empresarial.

Infelizmente, nosso ordenamento jurídico ainda não encontrou o equilíbrio ideal entre seu sistema multiagências de combate à corrupção e a celebração efetiva do acordo de leniência. Em especial com relação à segurança jurídica em seu ideal de estabilidade, pois não há por parte dos agentes privados horizonte de previsibilidade quanto à eficácia dos acordos celebrados.

A possibilidade de anulação dos acordos após sua celebração ou da aplicação de sanções por outro órgão, sobre os fatos ali negociados, em razão da ausência de um dos colegitimados na negociação, insere excessiva incerteza para o planejamento econômico das empresas. As sanções impostas as empresas uma vez não celebrados acordos efetivos atingem ativos necessários a atividade econômica, com grave repercussão econômica.

Para efeitos ilustrativos, citamos os exemplos que demonstram violações ao princípio da segurança jurídica com prejuízo à atividade econômica: 1) o TCU, no Acórdão 874/2018, decretou indisponibilidade de bens de uma empresa investigada por ilegalidades em contrato de obras civis na usina Angra 3, mesmo após a empresa ter celebrado acordo de leniência com o MPF sobre os mesmo fatos; 2) o TRF4, ao decidir o Agravo de Instrumento nº 5023972- 66.2017.4.04.0000/PR, negou eficácia ao acordo de leniência firmado entre Odebrecht e MPF em razão da ausência de participação da AGU em sua celebração, e manteve a indisponibilidade de bens da empresa, decretado com base nos fatos negociados no acordo.

Sob esse respeito, o acordo de cooperação técnica interinstitucional celebrado em agosto entre o Ministério Público Federal, a Controladoria-Geral da União, a Advocacia Geral da União, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Tribunal de Contas da União se mostra como importante marco da busca do equilíbrio na celebração dos acordos de leniência.

Além do ACT, o STF também deu sinais de que interpretará as competências para celebração dos acordos de leniência em favor da previsibilidade e segurança jurídica. No julgamento conjunto dos Mandados de Segurança nºs 35.435, 36.173, 36.496 e 36.526, o relator ministro Gilmar Mendes suspendeu a aplicação de sanções de inidoneidade e declaração indisponibilidade de bens de empresas que haviam celebrado acordos de leniência sobre aqueles mesmo fatos, privilegiando o aspecto da estabilidade — um dos mandados de segurança versava sobre o citado Acórdão 874/2018.

A possibilidade de recorrência de outra “lava jato”, não somente enquanto “combate a corrupção” — evidentemente necessário —, mas como fato gerador de incidência do sistema administrativo sancionador vigente, somada a atual regulação dos acordos de leniência, será um entrave aos investimentos e consequentemente precisa ser ajustada. Para melhoria do ambiente de negócios e retomada da economia sem fenecimento de um necessário combate a corrupção.

A Administração e seus órgãos de controle devem proceder à correção dos contratos tendo em vista a sua continuidade, bem como os impacto de suas decisões, substituindo a rigidez das punições pela flexibilidade das vias consensuais [17]. Essas vias devem oferecer certeza aos agentes econômicos e acordos nelas celebrados gozarem de estabilidade. Daí a importância de propostas como apresentadas recentemente, de implemento de guichê único na celebração dos acordos de leniência.

Empresas não devem ser alvejadas para atender a anseios populares por punição exemplar, sensacionalismo midiático ou à sede de protagonismo de agentes públicos. Em um país em que no ano de 2020 um secretário de Educação de ente federado expede lista com 42 obras, que vão de Machado de Assis a Euclides da Cunha, e ordena que sejam recolhidas das escolas — ressuscitando Index Librorum Prohibitorum versão tupinanquins —, entrevê-se a herança canônica da nossa atávica cultura jurídica e administrativa. Não obstante, não mais se lançam pessoas ou empresas à fogueira. Não se perscruta alguns sem provas e absolve-se outros em função de seu arrependimento com Deus.

O mito, nas palavras de Fernando Pessoa, sob o pseudônimo “Ulisses”, “é o nada que é tudo“. Contudo, “nada” não protegeu nossa economia de um sistema — ou a falta dele — anticorrupção mal urdido e do ativismo judicial na “lava jato”. “Nada” não mitigou os efeitos econômicos da pandemia. “Nada” provavelmente não ajudará também no pós-pandemia. Mitos não nos salvarão. Instituições e leis bem formuladas, talvez.


[1] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=destaques.

[2] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/10/13/covid-ja-tirou-r-13-bi-da-renda-do-pais-aponta-fgv.ghtml

[3] https://www.brasildefato.com.br/2020/08/06/salvar-a-economia-foi-discurso-na-pandemia-mas-por-que-nao-na-lava-jato

[4] Neste sentido ver: BERCOVICI, Gilberto; NETO José Francisco Siqueira; WARDE, Walfrido. Um plano de ação para o salvamento do projeto nacional de infraestrutura. São Paulo: Editora Contracorrente, 2015.

[5] Dados extraídos do relatório do GEACE, disponível em: https://www.thetricontinental.org/pt- pt/brasil/analise-mensal-sobre-a-economia-brasileira-1-2020/

[6] WARDE, Walfrido. O vírus nas relações Estado-empresa. IREE – Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa. Disponível.

[7] FGV Social a partir dos microdados da PNADC anual e PNAD Covid/IBGE

[8] NORTH. Douglass C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo: Três Estrelas, 2018. p.184,185

[9] AVARENGA, Darlan. Impacto da Lava Jato no PIB pode passar de R$ 140 bilhões, diz estudo. G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/08/impacto-da-lava-jato-no-pib-pode-passar- de-r-140-bilhoes-diz-estudo.html>

[10] SCHELLER, Fernando. Empresas citadas na Lava Jato demitiram quase 600 mil. Disponível em: <http://atarde.uol.com.br/economia/noticias/1855843-empresas-citadas-na-lava-jato-demitiram-quase-600-mil>.

[11] Central Única dos Trabalhadores (CUT). Operação Lava Jato causou prejuízos bilionários ao país, diz estudo. Disponível em <http://www.fetecpr.org.br/operacao-lava-jato-causou-prejuizos-bilionarios-ao-pais-diz-estudo/>

[12] DW. O ocaso da Odebrecht. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/o-ocaso-da-odebrecht/a-54350923>.

[13] Para um aprofundamento sobre o tema do moralismo jurídico, ver: GABARDO, Emerson. Os perigos do moralismo político e a necessidade de defesa do direito posto na Constituição da República de 1988. A&C- Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 17, n. 70, p. 65-91, 2017

[14] VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 46-50.

[15] VALIATI, Thiago Priess. Segurança jurídica e infraestrutura: a segurança como dever dos poderes público e como direito dos agentes econômicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 37.

[16] Neste sentido ver: SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 31

[17] FERRAZ, Luciano. Reflexões sobre a Lei no 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas: lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 33-43, out./dez. 2014.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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