A Semana de Arte Moderna de 1922 floresceu na paisagem nacional sob a garoa paulistana, no imponente Teatro Municipal de São Paulo, numa cidade ainda provinciana, mas já cosmopolita, com grande número de imigrantes estrangeiros, sobretudo italianos, e em rápido processo de industrialização, com um operariado politizado, urbanização acelerada, protagonizada por uma elite cultural e artística, caracterizando-se (a Semana de 22) sobretudo como um movimento oligárquico, e com forte apelo nacionalista, que pugnava por uma “brasileirização da criação plástica e literária” (Marcia Camargos, “SEMANA DE 22 entre vaias e aplausos”).
Contraditoriamente, uma brasileirização eurocêntrica, nacionalismo de opereta, colonial. A vanguarda artística paulistana estava divorciada da vanguarda política, como sublinhado por Florestan Fernandes (“Nem federação, nem democracia”): “A descolonização não foi percebida como um desafio científico ou diluiu-se na compensação psicológica proporcionada pela identidade intelectual europeia, que permitia forjar clichês novos, empilhando-os sobre outros preexistentes. Aos olhos das classes dominantes que concentravam o poder solidamente em suas mãos, a República seria uma monarquia sem imperador, uma democracia de senhores, das elites para as elites, para os mais ricos e poderosos, em suma, uma democracia restrita. A República foi designada como oligárquica, mas não era nem mais nem menos oligárquica que o império. O republicanismo foi sepultado ao nascer. A democracia dos senhores de escravo”.
O próprio Oswald de Andrade, um dos dois atores principais da Semana de 22, com Mário de Andrade, “descreveu o modernismo como um equívoco em que o contrário do burguês não era o proletário, e sim o boêmio, num território onde as massas continuavam ignoradas, enquanto os intelectuais brincavam e de vez em quando ‘davam tiros entre rimas’. Explicitando o divórcio que de resto sempre assinalou, no Brasil, as iniciativas culturais de um estrato esclarecido em contraponto à maioria da população, ele admitiria mais tarde que o movimento foi ‘uma contribuição da elite que não carreou para o corpo exangue da literatura os glóbulos vermelhos do nosso povo'” (Marcia Camargos).
Oswald de Andrade seguiu rapidamente adiante, com novos companheiros de viagem (Raul Bopp, Pagu, Oswaldo Costa, Jaime Adour da Câmara e Geraldo Ferraz), com a perspectiva de não deixar qualquer ideia ou obra ficar “cadaverizada”, como explica no “Manifesto Antropófago”: “Ideais objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico”.
O “Manifesto Antropófago” (1928), “texto fundacional para a sensibilidade cultural contemporânea” (Eduardo Viveiros de Castro), é decolonial, absolutamente antimodernista e, sobretudo, pós-modernista. Manifesto em sua dupla acepção (substantiva e adjetiva), tanto quanto um grito de guerra, chamamento à luta, como o que se opõe ao latente ou oculto. Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro: “A subida do latente do manifesto, a emergência à luz do dia do (in) consciente cultural humano — não o inconsciente edipiano e patriarcal, mas o ‘consciente antropofágico’, dionisíaco e matriarcal”. O manifesto antropófago como a manifestação do antropófago, sua explicitação. Afinal, “Não é tempo para silêncios!”, título do recente (2019) livro do Cezar Britto.
O consciente antropofágico dionisíaco e matriarcal advém da profundidade cultural dos nossos ancestrais ameríndios. Tupi or not tupi, dos mais conhecidos e citados aforismos do “Manifesto Antropófago”, parodia a fala do personagem Hamlet na peça de Shakespeare: “To be or not to be, that is the question”, que nos reporta à crise do mundo patriarcal (de vingar ou não a morte do pai). E a resposta já está contida na pergunta: tupi, é claro. Um brado pela adoção do pensamento selvagem, assim explicado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “O pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens ou dos ‘primitivos’ (em oposição aos ‘pensamento ocidental’), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não domesticado em vista da obtenção de um rendimento”.
Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa o mundo de hoje acredita que tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar, segundo ele somos o “povo da mercadoria” (“A queda do céu — palavras de um xamã yanomami”). Enquanto, desde a sua criação, em 1919, no Tratado de Versalhes, a Organização Internacional do Trabalho proclama que a Sociedade das Nações tem por objetivo estabelecer a paz universal e que a paz não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social e que o trabalho humano não pode ser considerado uma mercadoria.
A época moderna em que o absolutismo monárquico com sua estrutura do poder nas mãos do clero e da nobreza foi substituído pelo poder da burguesia, no seio de um Estado liberal, é marcada pela construção de uma nova sociedade que coloca a economia como o eixo estruturador único de toda a vida social, submetendo a ela a política e relegando a ética para o limbo, como destaca Zigmund Baumann em seu “Modernidade Líquida”: “O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos econômicos”.
O advento do Direito do Trabalho marca a passagem do modelo do direito do Estado de Direito liberal para o modelo do direito do Estado de Direito social. Surgiu exatamente para debelar a questão social deflagrada pela chamada revolução industrial, época em que prevalecia a livre contratação e o dogma da autonomia da vontade, transpostos para o âmbito da relação jurídica de emprego, intrinsecamente assimétrica (pressupõe a subordinação jurídica de uma parte em relação a outra), desaguou no trabalho degradante, em condições aviltantes, no cumprimento de jornadas exaustivas e estafantes (16 e até 18 horas), especialmente das mulheres e dos menores, que constituíam a mão de obra mais barata, em regime análogo ao de escravo.
Nesse contexto, o mantra da “modernização do Direito do Trabalho” tão alardeado para a aprovação da chamada reforma trabalhista, da Lei 13.467/2017, em curtíssimo espaço de tempo, sem qualquer diálogo social, faz sentido como um retrocesso à época moderna, anterior à do surgimento do Direito do Trabalho. O passado tornando-se um presente recauchutado, como reverbera Cezar Britto no livro acima citado: “A reforma trabalhista é o exemplo pronto e acabado da modernização como resultado de mudança involutiva. Ou, em outras palavras, o renascimento da Idade Moderna (1453-1789). A malsinada reforma trabalhista retroage ao tempo da coisificação da pessoa humana, denunciada na Revolução Industrial”.
A Lei 13.467/2017 é altamente prejudicial à classe trabalhadora, a imensa maioria da população brasileira que depende exclusivamente de sua força de trabalho para sobreviver, suprimiu vários direitos fundamentais trabalhistas. À guisa de exemplo, cite-se a esdrúxula figura do “autônomo exclusivo”, posta à margem da proteção da legislação trabalhistas; a possibilidade de a negociação coletiva revogar ou reduzir direitos trabalhistas previstos em lei; ampliação dos casos de terceirização desobrigando a observância do princípio da isonomia entre os empregados de ambas as empresas; eliminação das horas in itinere; o tabelamento aviltante de danos morais; a revogação da obrigatoriedade de assistência do sindicato na rescisão; fim da necessidade de negociação coletiva para demissão em massa; a eliminação da ultratividade, entre vários outros, a lista de supressão de direitos sociais levada a efeito pela Lei 13.467/2017 é deveras extensa. Como categoricamente asseverado por Silvio de Almeida em sua coluna na Folha de S.Paulo de 6 de janeiro: “Sejamos diretos: a reforma trabalhista é uma tragédia. Não criou empregos, não modernizou o país (seja lá o que for isso) e só fez prejudicar trabalhadores, sindicatos e pequenos empresários; deprimiu ainda mais a economia, fragilizou o sistema de proteção social, criou medo e insegurança, além de ter aumentado a desigualdade, quesito no qual tradicionalmente estamos entre os campões mundiais”.
Ressalte-se que o teletrabalho, assim entendido o trabalho remoto exercido com uso intensivo de tecnologia, potencializado na pandemia, há muito tem previsão na CLT, em seu artigo 6º, parágrafo único: “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoas e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. Como é sabido, esses meios telemáticos e informatizados de comando permitem uma fiscalização da jornada à distância pelo empregador, de se mensurar a produção e a atividade do empregado, o que torna descabida a exclusão do direito às horas extras aos empregados em regime de teletrabalho feita pela Lei 13.467/17.
O termo modernização, em sua acepção positiva, como vinculado à essência evolutiva da humanidade, aponta para a ampliação dos direitos sociais trabalhistas e fortalecimento dos sindicatos, em sentido diametralmente oposto ao da reforma trabalhista. O perspectivismo amazônico, intrínseco à utopia antropofágica, carrega em seu âmago o espírito guerreiro dos povos originários sobreviventes, com 500 anos de resistência contra a barbárie da colonização do sistema do mundo racista/capitalista/cristão/patriarcal/moderno europeu. Uma cosmovisão genuinamente brasileira, que mira a transgressão, e não a subversão, que opera sem a pretensão de exterminar o outro com que se joga, mas de engoli-lo, atravessá-lo, adicioná-lo como acúmulo de força vital, com o resgate de saberes ancestrais, praticados durantes séculos, uma cultura antropofágica, e não messiânica. Como bem disse Oswald de Andrade: “No fundo de cada utopia não há somente um sonho, há também um protesto”.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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