No último dia 5/2 o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, que foi proposta em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) objetivando reduzir a letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro.
Na ação, alega o PSB violação massiva de direitos fundamentais no estado do Rio de Janeiro, em razão da omissão estrutural do poder público em relação ao problema.
Há, de acordo com o partido propositor da ADPF, um quadro de grave violação generalizada de direitos humanos em razão do descumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília. Decisão que reconheceu relevante omissão e demora, injustificável, do Estado do Rio de Janeiro na elaboração de um plano para a redução da letalidade dos agentes de segurança pública. Sendo certo que as Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos possuem efeitos vinculantes, ou seja, consistem em uma obrigação para o Estado Brasileiro [1].
Segundo os advogados Daniel Sarmento e Ademar Borges que, em caráter pro bono, propuseram a ação em nome do partido, a premissa fundamental da ADPF
“é de que é possível conciliar a garantia da segurança pública com o respeito aos direitos dos moradores das favelas – que, na sua imensa maioria, não têm qualquer relação com a criminalidade”. Destacam, ainda, os advogados que “as mortes desses moradores – inclusive de crianças – não podem ser tratadas como meros danos colaterais no combate ao crime”. [2]
Após o substancioso e profundo voto do ministro relator Edson Fachin, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu o julgamento para que, em razão da complexidade do tema, o colegiado tenha um prazo suficiente em busca da construção de consensos sobre as propostas constantes do voto do ministro relator
Da violência e da letalidade policial
Como já dissemos alhures, a violência policial no Brasil tem raízes históricas. Quando a família real chegou ao Rio de Janeiro encontrou, segundo historiadores, uma “população hostil e perigosa” e muitos africanos. Com o temor que se repetisse no Brasil a mesma revolta de escravos ocorrida no Haiti em 1792, a realeza de Portugal logo formou uma força policial para controlar as chamadas “classes perigosas” que viviam no Rio.
Constata-se assim que a função original e prioritária da polícia era defender a elite dirigente (realeza e seus aliados) contra as “pessoas perigosas e de cor” e, também, de recapturar escravos fugidos. Talvez aí resida a explicação para que até hoje, 200 anos após sua criação, a polícia continue agindo preconceituosamente e para defender prioritariamente os interesses das classes dominantes.
Controlar a violência, especialmente, a violência praticada por agentes do Estado (pelas Forças Armadas e pelas polícias), é uma exigência para a concretização do Estado Democrático de Direito [3].
No que se refere a letalidade policial – que continua extremamente elevada, notadamente contra os mais vulneráveis — o Anuário Brasileiro de Segurança Pública [4], 2024, revela que:
“Desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar o indicador mortes decorrentes de intervenções policiais em território nacional, o crescimento no número de pessoas mortas foi de 188,9%, resultando em 6.393 vítimas apenas no ano passado. Isso significa que 17 pessoas são mortas diariamente pelas forças policiais brasileiras em ocorrências que presumem o excludente de ilicitude, ou seja, que o agente estatal fez uso da força letal em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal/no exercício regular de direito. Embora a elevada letalidade não seja um fenômeno característico de todas as forças policiais brasileiras, é possível afirmar que em pelo menos metade dos estados as mortes por intervenções policiais têm se mostrado um problema em anos recentes.”
Tendo como referência os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, levantamento feito pelo UOL revela que “os policiais militares e civis do Brasil matam quase o triplo do que os agentes de segurança de 15 países do G20 somados”. Ainda, segundo o levantamento, os policiais brasileiros, proporcionalmente, matam 36 vezes mais do que a média dos agentes de outras nações [5].
A letalidade policial quase triplicou numa década. A polícia continua matando. Sempre ou quase sempre, pessoas jovens, pobres, negras e faveladas. No ano de 2023 quase 90% dos mortos por policiais eram negros de acordo com estudo elaborado pela Rede de Observatório da Segurança [6]. Pessoas invisíveis e que somente são vistas depois de mortas quando se transformaram em cadáveres ou rostos estampados nos jornais.
Não resta dúvida de que a sociedade também puxa o gatilho que mata essas pessoas. Somos participes dessas mortes. Não são raras as vezes que boa parte da sociedade ignora ou, até mesmo, aprova atitudes da polícia que procura através dos forjados “autos de resistência” [7] ou da desqualificação completa das vítimas — “bandidos” — justificar suas ações. Outra forma bastante comum de tentar justificar suas ações é a alegação — que não resistiria a uma investigação séria – de que as mortes ocorreram em confrontos com criminosos armados e em tiroteios.
As abordagens violentas por parte dos policiais- que resultam em lesões corporais e por vezes na morte do abordado – são motivadas majoritariamente e via de regra pela “aparência do abordado”. A “atitude suspeita”, como bem observa Nilo Batista, “é quase sempre resultante da violação de uma regra absolutamente ilegal, que interdita o acesso de pobres a certos espaços urbanos” [8].
Não há no Brasil, assevera Nilo Batista, “qualquer organização, criminosa ou não, que consiga matar anualmente dez por cento do número de mortos pela polícia (…) Em 2019 a polícia do Rio alcançou a marca de 1814 fuzilados/ano, o que dá 151 por mês e 5 por dia” [9].
É forçoso, ainda, salientar, em razão da seletividade do sistema penal, que a chance de um negro (preto ou pardo) ser morto é quatro vezes maior que de um branco. A colunista Ana Cristina Rosa, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, assevera que o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou um verdadeiro massacre racial. Coisa que faz do slogan ‘na dúvida, mate o negro’ a ilustração perfeita da prática das polícias” [10].
Diante de tudo, adverte, com toda propriedade, Orlando Zaccone, que “a polícia mata, mas não mata sozinha” [11]. Na verdade, quem mata é o sistema penal. O sistema mata os pobres, os negros, os favelados, analfabetos, enfim, os vulneráveis. Quando não mata, encarcera.
O voto do ministro Edson Fachin
Segundo Sarmento e Borges, entre os diversos pedidos formulados na ADPF e acolhidos pelo STF, como a criação de instrumentos de controle sobre operações policiais, a imposição do uso de câmaras de vídeo nas fardas e viaturas policiai e a exigência de investigações independentes feitas pelo Ministério Público em casos de morte provocadas por agentes de segurança pública, jamais, diferentemente e ao contrário do que foi, levianamente, divulgado por alguns, se requereu na referida ação e o Supremo, também, nunca decretou a proibição total de operações policiais em favelas [12].
No ano de 2019, em que a ação foi ajuizada, 1.814 pessoas foram mortas em ações da polícia do estado do Rio de Janeiro, enquanto em 2024, em decorrência da ADPF e das medidas cautelares deferidas pelo STF, número baixou para 699, uma queda de mais de 61%, de acordo com dados oficiais.
Essa redução, segundo os advogados e confirmado no voto do ministro Fachin, não gerou, como alguns podiam imaginar, aumento nos índices de criminalidade. Ressalta-se que de acordo com dados oficiais, confirmados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os indicadores criminais no Rio de Janeiro caíram ou se mantiveram estáveis no período da ADPF.
As estatísticas revelaram a queda dos índices oficiais que resultaram em mortes (18,4%), roubos de veículos (44%), roubos de rua (57,2%), roubos a transeuntes (60,9%), roubos a coletivos (64,3%), roubos de celular (42,2%) e roubos de carga (56,8%).
De acordo com o ministro relator, os números “evidenciam que a adoção de parâmetros de transparência e controle na atividade policial possibilitam o exercício das funções de segurança pública de forma competente e sem elevação de índices de criminalidade” [13].
Em seu voto de cerca de 200 páginas o ministro relator após apresentar o histórico da violência e da letalidade policial, observou que, apesar dos avanços obtidos a partir de diretrizes fixadas pelo STF em decisões cautelares proferidas na ADPF 635, algumas medidas não foram até o momento implementadas totalmente. Mas que apesar da edição de diversos atos normativos, a partir de dezembro de 2023, é necessário, para a superação efetiva das violações de diretos fundamentais (estado de coisas inconstitucional), determinações complementares, a consolidação de medidas estruturais em andamento, além de um novo ciclo de acompanhamento e monitoramento com coordenação local [14].
Dentre as propostas apresentadas pelo ministro Fachin, destacam-se: 1) o governo estadual – para assegurar a transparência e embasar a adoção de providências para dar continuidade a redução da letalidade — deve divulgar dados sobre uso excessivo e abusivo da força e de civis vitimados em confronto armado com a participação de forças de segurança em que autoria do disparo seja indeterminada; 2) sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de crimes, a investigação será atribuição do Ministério Público; 3) prazo de 180 dias para que o governo estadual regulamente a aferição da incidência da letalidade desproporcional na atuação policial; 4) afastamento preventivo das atividades de policiamento ostensivo para os agentes que se envolvam em mais de uma ocorrência com morte no período de um ano; 5) prazo de 120 dias para que seja comprovada a implantação de câmaras corporais na Polícia Civil; 6) proibição da atuação de peritos vinculados à Polícia Civil a fim de assegurar a independência das investigações em que haja suspeita de mortes intencionais em ações ou operações da corporação; e 7) a criação de um comitê para acompanhar o cumprimento da decisão do STF.
Conclusão
Por tudo, é urgentemente necessário que seja discutida uma reforma estrutural e substancial das polícias. É preciso, ainda, que o Estado se afaste, em definitivo, de uma política de segurança pública autoritária, escorada por ações policiais abusivas, ilegais e truculentas, que tem como fim o controle social dos indesejáveis e dos considerados “inimigos” internos. Mas enquanto isso não é feito, por inúmeras razões, é imprescindível que o Supremo Tribunal Federal julgue procedente, nos termos do voto do ministro relator Edson Fachin, a ADPF 635, ou que, pelo menos, se chegue a um razoável consenso a fim de reduzir ao máximo a vergonhosa cifra da letalidade policial em nome dos princípios norteadores de um Estado que se pretende democrático e de Direito.
[1] https://noticias.stf.jus/br/postsnoticias/relator-propoe-homolocao-parcial-de-plano-do-rio-de-janeiro-para-reduzir-letalidade-policial/ Acesso em: 6 fev. 2025
[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/a-adpf-das-favelas-e-o-supremo.shtml
[3] MESQUITA NETO, Paulo. Violência policial no Brasil: abordagens teóricas e práticas de controle. In: CIDADANIA, justiça e violência/Organizadores Dulce Pandolfi…[et al]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999. P. 130-148.
[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.or.br/handle/123456789/253 . Acesso em: 19/7/2024.
[5] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/12/18/dados-policia-letalidade-g20.htm . Acesso em: 19 dez. 2024.
[6] https://observatorioseguranca.com.br
[7] De acordo com Orlando Zaccone “o auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa”. (ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.)
[8] BATISTA, Nilo. Apresentação (ou algo melhor que a polícia). Sem polícia. In: Sem polícia. Acácio Augusto… [et. al]; Vera Malaguti Batista (Org.). 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024.
[9] Idem.
[10] https://www.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2024/07/o-destino-dos-negros.shtml Acesso em: 19 nov. 2024.
[11] ZACCONE, Orlando. op. cit.
[12] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/a-adpf-das-favelas-e-o-supremo.shtml
[13] https://noticias.stf.jus/br/postsnoticias/relator-propoe-homolocao-parcial-de-plano-do-rio-de-janeiro-para-reduzir-letalidade-policial/
[14] Idem.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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