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Breves considerações sobre o concurso de agentes na “Trama Golpista”

Breves considerações sobre o concurso de agentes na “Trama Golpista”

O concurso de pessoas na “Trama Golpista”. Crimes plurissubjetivos . Todo aquele que concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.

Sem qualquer pretensão de adentrar no mérito dos processos daqueles que já foram condenados pelo STF, bem como do recebimento da denúncia, no último 26 de março, pela Primeira Turma do STF, que tornou réu o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete ex-integrantes do seu governo, sendo três generais do Exército, é necessário fazer algumas brevíssimas considerações sobre o concurso de pessoas nos crimes da Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito e de Golpe de Estado.

A lei 14.197/21, revogando expressamente a lei 7.710/83 – que definia os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social – introduziu um novo título na Parte Especial do Código Penal, denominado “Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, superando quaisquer referências à “segurança nacional”, expressão no dizer de Carlos Canedo, que possui carga extremamente negativa, “intimamente ligada a motivos que determinaram procedimentos ilegais e abusivos de repressão política ao longo da história”.1

Entre os crimes agora previstos no Código Penal (CP), além dos crimes da Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L)2 e de Golpe de Estado (art. 359M)3, objeto de análise neste pequeno opúsculo, estão: “Atentado à soberania” (art. 359-I); “Atentado à integridade nacional (art. 359-J); “Espionagem (art. 359-K); “Impedimento ou perturbação do processo eleitoral” (art. 359-N), “Violência política” (art. 359-P) e “sabotagem” (art. 359-R).

Do Concurso de Pessoas

Art. 29 do CP – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

O tema do concurso de pessoas ou de agentes no crime é, sem dúvida, um dos mais complexos e difíceis da dogmática penal, notadamente em razão das diversas teorias sobre matéria, assim como das inúmeras situações fáticas que se apresentam.

Este artigo se limitará, como já dito, em abordar o tema do concurso de pessoas somente em relação aos crimes de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de Golpe de Estado (art. 359M).

O fato punível, como ensina Aníbal Bruno, “pode ser obra de um só ou de vários agentes. Seja para assegurar a realização do crime, para garantir-lhe a impunidade, ou simplesmente porque interessa a mais de um o seu cometimento, reúnem-se os consócios, repartindo entre si as tarefas em que se pode dividir a empresa criminosa, ou, então, um coopera apenas na obra de outro, sem acordo embora, mas com a consciência dessa cooperação”.4

São requisitos do concurso de pessoas: a) pluralidade de agentes; b) relevância causal da conduta; c) liame subjetivo ou psicológico entre os agentes (não sendo necessário o chamado “pactum sceleris” ou ajuste prévio) e d) homogeneidade do crime.

Duas são as modalidades de concurso de pessoas: 1) autoria e 2) participação. Esta última se subdivide em: a) instigação e b) cumplicidade.

Por autor, sem o devido aprofundamento nos diversos conceitos (unitário ou monista; restritivo ou objetivo-formal; extensivo; subjetivo e finalista) e, de igual modo, das teorias ou critérios que buscam delimitar e diferenciar a autoria da participação, adota-se aqui a teoria do domínio do fato.

Embora Hans Welzel em 1939 já tivesse se referido ao “domínio final do fato”, foi o jurista alemão Claus Roxin em obra elaborada para obtenção da Cátedra de Direito Penal da Universidade de Munique, intitulada “Autoria e Domínio do Fato no Direito Penal”5 publicada pela primeira vez na Alemanha em 1963, o responsável pela elaboração do conceito de domínio do fato.

Segundo um critério final-objetivo, explica Nilo Batista6, “autor é aquele que, na concreta realização do fato típico, conscientemente o domina mediante o poder de determinar o seu modo, e inclusive, quando possível, de interrompê-lo”. Ensinando, ainda, que “a noção de domínio do fato (Tatherrschaft) é, pois, constituída por uma objetiva disponibilidade da decisão sobre a consumação ou desistência do delito, que deve ser conhecida pelo agente (isto é, dolosa) “. Como bem assevera o professor em sua clássica obra, a posição de domínio somente pode ser concebível com a intervenção da consciência e vontade do agente. Não podendo, assim, haver domínio do fato sem dolo, compreendido como conhecer e querer os elementos objetivos que compõe o tipo legal.

A ideia básica da teoria do domínio do fato, de acordo com Juarez Cirino dos Santos,7 é a de que o autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica, enquanto o partícipe não domina a realização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica.

Para Beatriz Vargas, “o vocábulo partícipe deve ser reservado para destacar, dentre todos os agentes em concurso, somente aqueles que, embora concorrendo para a prática da infração penal, desempenham atividade diversa da do autor. Partícipe é aquele que, sem realizar conduta típica em si mesma, contribui para com a ação típica de outrem”.8

No que se refere a participação vale distinguir a instigação da cumplicidade. Instigador, de acordo com Aníbal Bruno, “é aquele que determina outrem à pratica de um crime”. Já cumplice, segundo o citado autor, “é aquele que presta auxílio a atividade criminosa do autor principal’. Destaca-se que só há participação, se o instigador ou o cumplice agir com consciência de que está cooperando no fato de outrem (vínculo da participação).9

No direito brasileiro, E. Raúl Zaffaroni et al. explicam que “toda e qualquer contribuição de natureza espiritual para o delito alheio constitui instigação: não há espaço entre nós para a chamada ‘cumplicidade psíquica’. Assim, toda e qualquer contribuição de ordem espiritual (conselhos, instruções, informações etc.) configura instigação em sentido amplo […]”.10 Já a cumplicidade (auxílio) é tida como a contribuição dolosa de natureza material para o cometimento de um crime doloso por outrem. A contribuição, explica os citados autores, “pode consistir no exercício de uma conduta (p. ex. observar os horários praticados pela vítima) ou na provisão de uma coisa (p. ex. o fornecimento de uma arma)”.11

Nota-se que em determinados casos, como no exemplo dado de “observar os horários praticados pela vítima”, a conduta analisada isoladamente pode ser considerada irrelevante, o que não ocorrerá se a mesma conduta for avaliada no conjunto da realização do crime.

Do concurso de pessoas nos crimes de Abolição violenta do Estado democrático de direito e Golpe de Estado

Em relação ao concurso de agentes nos crimes supracitados, é preciso dizer que em regra os referidos crimes são plurissubjetivos12 (também chamado de concurso necessário ou coletivo), aquele que só pode ser cometido por uma pluralidade de agentes. Embora o concurso de agente seja, em regra, apenas eventual, na hipótese dos crimes plurissubjetivos a conduta típica requer necessariamente o concurso de duas ou mais pessoas.

Como assevera Heleno Fragoso, os crimes plurissubjetivos admitem a participação, devendo-se observar, de acordo com Nilo Batista, que qualquer auxílio ao fato converte o cúmplice em autor direto”13.

Obviamente, o “concurso necessário dos demais agentes deve estar abrangido pelo dolo de quem pratica crime plurissubjetivos. Isso significa que, do ponto de vista subjetivo, tais crimes exigem a consciência de participação alheia”.14

Conclusão

Milhares de pessoas participaram e, portanto, concorreram para os crimes de Abolição violenta do Estado democrático de direito e Golpe de Estado, entre outros, que culminou como a invasão, o ataque e a depredação, na Praça dos Três Poderes em Brasília, ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro de 2023.

Sendo certo que a grande maioria das pessoas agiram dolosamente e tinham plena consciência de que estavam de algum modo concorrendo para os crimes de “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (Art. 359-L do CP) e de “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” (Art. 359-M do CP).

Frise-se que a chamada “Trama Golpista” se iniciou bem antes do fatídico dia 8/1. Até as pedras sabiam que o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus asseclas planejavam um Golpe de Estado com a deposição do governo legitimamente eleito.

Os crimes em questão, além de crimes de perigo concreto, são chamados, também, de crimes de empreendimentos em que havendo o início da execução e, portanto, configuração da tentativa completou-se o iter criminis (caminho do crime). O crime está consumado.

Não resta nenhuma dúvida de que todos os requisitos do concurso de pessoas se fazem presentes.

Contudo, é imperioso que cada um dos que concorreram para os crimes sejam punidos como diz a lei na “medida de sua culpabilidade”, que deve ser levada em consideração para uma adequada aplicação da pena para cada concorrente.15

De igual modo, aqueles que promoveram, financiaram ou lideraram a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e a tentativa de Golpe de Estado deverão ser punidos em razão da maior culpabilidade.


1 SILVA, Carlos Augusto Canedo Gonçalves da. Crimes políticos. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.

2 Art. 359-L do CP – Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

3 Art. 359-M do CP – Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.

4 BRUNO, Aníbal. Direito penal. Parte geral, tomo 2º: Fato punível. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 257.

5 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Trad. Joaquín Cuelo Contreras e José Luís Serrano Gonzáles de Murillo. Barcelona: Marcial Pons, 2000.

6 BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes: Uma investigação sobre os problemas da autoria e da participação. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 69.

7 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6ª ed. ampl. e atual. Curitiba, PR: ICPC Cursos e Edições, 2014, p. 348.

8 RAMOS, Beatriz Vargas. Do concurso de pessoas: contribuição ao estudo do tema na nova parte geral do código penal. Belo Horizonte: Del Reu, 1996, p. 200.

9 BRUNO, Aníbal. Op. cit., p. 274.

10 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, volume 2, tomo 2. Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 486.

11 Idem, ibidem.

12 BATISTA, Nilo e BORGES, Rafael. Crime contra o estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Revan, 2023, p. 87.

13 BATISTA, Nilo. Op. cit. p. 179.

14 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 12ª ed., ver. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p.261.

15 RAMOS, Beatriz Vargas. Do concurso de pessoas, op. cit. p. 178.

Artigo publicado originalmente no Migalhas.

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