Por Bruno Shimizu, Maíra Fernandes, Francisco Job Neto, Daniel Sarmento, Eleonora Rangel Nacif, Luciana Boiteux e Gabriel Sampaio
Enquanto o mundo assiste, atônito, ao avanço do novo coronavírus, e a OMS recomenda isolamento social e cuidados de higiene como meios para evitar a disseminação da doença, vem causando perplexidade o comportamento de determinadas autoridades públicas no âmbito do governo federal. Enquanto o próprio presidente parece fazer questão de tomar parte em aglomerações e utilizar a mídia para pedir que a população descumpra medidas sanitárias, o ministro da Justiça, demonstrando inescusável desconhecimento sobre o sistema prisional, veio a público tecer críticas à recente Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, que orienta os magistrados a procederem à revisão de prisões de pessoas insertas no grupo de risco aumentado para complicações da doença ou encarceradas por crimes sem violência.
Em artigo publicado no blog de Fausto Macedo na segunda-feira, dia 30, Sérgio Moro afirma que o “‘fique em casa’ defendido como medida universal, para os presos deriva em ficar nas prisões, domicílio precípuo dessa população”, posição que, além de incompatível com a responsabilidade de seu cargo, demonstra desatenção a um risco real e iminente: o de que as prisões se tornem epicentros de disseminação da doença para toda a população.
Alvo dos ataques públicos do ministro, a Resolução do CNJ recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo SARS-Cov-2 nos estabelecimentos prisionais e de internação de adolescentes, com especial atenção aos grupos de riscos, que incluem idosos, pessoas acamadas, gestantes, lactantes, soropositivos, pessoas com câncer, com tuberculose e outros pneumopatas, com doenças cardíacas e com doenças crônicas. A iniciativa foi elogiada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos[1], com recomendação aos demais países da região para que adotem medida semelhante. Neste mesmo sentido, o Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU, em 25 de março, recomendou a redução das populações prisionais como prevenção à pandemia[2].
Não se trata de uma “recomendação de concessão de regime domiciliar de forma generalizada para presos”, como parece crer o ministro. Tampouco é essa a solicitação apresentada ao Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADPF n. 347, que reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive, hoje, um Estado de Coisas Inconstitucional. Na última quinta-feira, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, as Defensorias Públicas de São Paulo e Rio de Janeiro e o PSOL, autor da ação, solicitaram que a mais alta Corte do país determine ao Poder Público a adoção de uma série de medidas para conter a disseminação do coronavírus no ambiente prisional, como a entrega de equipamentos de proteção aos agentes penitenciários, a proibição de racionamento de água no período e a elaboração de plano junto à rede de saúde pública para atendimento da população privada de liberdade que necessite de atendimento emergencial.
No âmbito do Poder Judiciário, requerem as entidades que sejam adotadas as medidas recomendadas pelo Conselho Nacional de Justiça, sempre com a ressalva de que a prisão poderá ser mantida, mesmo nos casos de crimes sem violência ou de presos insertos nos grupos de risco, em casos excepcionalíssimos, a serem concretamente fundamentados pelo juízo competente a partir de sua independência funcional.
Tais pedidos espelham a recomendação do CNJ e se encontram respaldados por epidemiologistas e sanitaristas, que preveem um largo alastramento da infecção pelos presídios, caso medidas urgentes não sejam tomadas. Em prisões superlotadas, é impossível realizar o isolamento dos internos. A própria Portaria Interministerial n. 7, assinada pelos ministros da Justiça e da Saúde, prevê a necessidade de isolamento de presos com sintomas suspeitos, com o distanciamento em um raio de dois metros, o que é inexequível em uma realidade onde eles têm que dividir colchões e se amontoam em celas insalubres, sem luz solar e ventilação suficiente e, na maior parte das vezes, sem acesso a itens básicos de higiene ou mesmo ao fornecimento ininterrupto de água.
Não bastasse, os presos já apresentam condição de vulnerabilidade maior, dado o fato de que são selecionados dos extratos mais precarizados da sociedade, trazendo a cabo a carência nutricional, o alto índice de infecção por HIV e tuberculose, o histórico comum de uso problemático de drogas, o que possibilita dizer que, se contraída a doença, há grandes chances de ser necessária internação hospitalar, impactando, ainda mais, a rede pública de saúde[3].
Não é aceitável que o ministro da Justiça considere benéfico o confinamento em lugar insalubre, sobretudo valendo-se do falacioso argumento que compara ao contexto brasileiro o número relativamente moderado de mortes nos sistemas prisionais europeus. Convenientemente, o ministro omite o fato de que, na Europa, a regra é que cada pessoa cumpra sua pena em celas individuais, sendo que os presos são submetidos à testagem de doenças infectocontagiosas no momento da inclusão, o que não ocorre no Brasil. Omite, ainda, que, independentemente das necessidades de UTI, entre as pessoas entre 20 e 60 anos, a infecção pode levar à necessidade de internação em cerca de 10% dos casos, para suplementação de oxigênio e antibioticoterapia endovenosa. Não existe logística possível que permita levar esses insumos ao ambiente penitenciário brasileiro e é inviável que todos aqueles que necessitem de socorro médico sejam transportados baixo escolta para os já quase colapsados hospitais da rede do SUS.
Como se vê, aliás, não é sequer possível à população carcerária cumprir minimamente os protocolos sanitários gerais. No Estado de São Paulo, além de ser comum que 40 pessoas vivam em uma cela projetada para 12, conforme dados levantados pela Defensoria Pública, 70,8% das unidades prisionais se utilizam da prática do racionamento de água, 69% dos presos afirmam que não recebem sabonete sempre que necessitam, e 77,28% das unidades não possuem equipe mínima de saúde, nos termos da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional.
Não à toa, “um preso morre a cada 19 horas em São Paulo”[4]. Segundo dados do próprio Ministério da Justiça, uma pessoa presa tem seis vezes mais chances de morrer do que alguém fora do cárcere[5] e 34 vezes mais chance de contrair tuberculose.[6] No Rio de Janeiro, mais de 350 internos estão nesse momento diagnosticados com tuberculose, sendo que a condição de pneumopatas já os classifica como grupo de risco para coronavírus. Não bastasse, o número de doenças é subnotificado pelas unidades prisionais e o tipo de óbito é, invariavelmente, apontado como “morte natural”, omitindo-se a real causa mortis. No caso de uma pandemia, essa prática de pode causar enorme prejuízo para a adoção das medidas cabíveis para a contenção da covid-19.
Isso, por si só, já justificaria medidas de desencarceramento, como as tomadas em diversos países como parte de um plano consistente de enfrentamento da pandemia. Mas engana-se quem pensa que só a população carcerária corre risco de ser afetada por um surto de covid-19 nos locais de custódia. Todas as pessoas que trabalham nas unidades prisionais, como agentes penitenciários e de escolta, policiais, advogados, defensores públicos, juízes, promotores, profissionais de saúde, psicólogos, assistentes sociais e, por consequência, todos aqueles que os cercam, seus familiares, amigos e vizinhos estarão vulneráveis. Trecho do próprio artigo do ministro dá a dimensão disso: 83.604 servidores prisionais entram e saem das prisões, todos os dias.
No mais, olvida-se o ministro que o Poder Judiciário continua decretando novas prisões, bem como há presos que, nesse período, verão suas penas chegarem ao fim e serão soltos, o que propiciará que o vírus transite para dentro e para fora do sistema. Ainda, não se pode esquecer que, onde há vagas de trabalho, os presos produzem bens que serão distribuídos ao mundo exterior, sendo que em vários Estados e no Distrito Federal, essa força de trabalho vem sendo usada na produção suplementar de máscaras e outros equipamentos sanitários.
É de se observar, nesse sentido, a experiência de países em que a pandemia já se encontra em estágio mais avançado. Em Nova York, o novo vírus está se disseminando pelas prisões e o ambiente prisional está sendo considerado um epicentro de contaminações na cidade, conforme análise da Legal Aid Society, que aponta que a taxa de infecções no ambiente prisional espraia-se em velocidade sete vezes maior que no restante da população[7].
Mais uma vez, apesar da louvável Recomendação do CNJ, a Governo Federal parece querer colocar o Brasil na contramão do mundo. O Irã, mesmo sem arraigada tradição democrática, não tardou em determinar a colocação em meio aberto de, aproximadamente, 70 mil internos[8]. Nos Estados Unidos[9]–[10], diversos estados também adotaram medidas desencarceradoras, a exemplo de Nova York e Ohio. Na Itália, o último decreto “Cura Italia” determinou a colocação em prisão domiciliar dos presos que estivessem a menos de 18 meses do término de cumprimento da pena, medida que atingiria 9,8% de toda a população prisional italiana[11].
Além da preocupação com a saúde, há uma atenção especial com a segurança pública, pois a disseminação da doença no sistema penitenciário e as previsíveis mortes dela decorrentes podem desencadear rebeliões e fugas, como as que ocorreram recentemente no Estado de São Paulo, na Itália e na Colômbia, onde 23 pessoas morreram, expondo ainda a risco a incolumidade de policiais e agentes de segurança penitenciária.
Há tempos encarceramos, de forma essencialmente seletiva e classista, pessoas em condições de evidente indignidade. Onze anos atrás, o Relatório Final da CPI da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Prisional concluiu que a superlotação é a “mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário”. Agora, se nada for feito, poderá ser ela a grande responsável pela disseminação do vírus pelo país, o aumento do número de mortes, o congestionamento dos hospitais e uma crise de segurança pública sem precedentes.
Embora pareça sedutora a quem desconhece a dinâmica prisional, a proposta de manter os presos, indiscriminadamente, no que o ministro chama de “domicílio precípuo dessa população”, não é racional e não protege os cidadãos livres. Essa linha de raciocínio expõe a risco a saúde e a vida dos presos, dos agentes prisionais, dos policiais, de suas famílias e dos profissionais de saúde que atuam no sistema. Expõe a risco, ainda, toda a comunidade que receberá os presos que vejam suas penas chegarem ao fim. No mais, a julgar pela vulnerabilidade dessa população e as precariedades do sistema, que aumentarão o número de infecções, são previsíveis impactos sérios diante da insuficiência de leitos, de insumos hospitalares e de respiradores, dentre outros aparelhos custosos e escassos, necessários ao tratamento de casos graves.
A tomada de medidas de desencarceramento racional, a partir de critérios pensados de forma fundamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, portanto, não é qualquer benesse. É uma forma de proteger toda a população, esteja ela privada de liberdade ou não, e de modo algum pode ser prejudicada por impulsos ideológicos e opiniões isoladas, sem fundamentação científica, por parte de quem vem demonstrando desconhecer a dinâmica e a gestão do sistema prisional brasileiro.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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