Mal saímos das eleições de 2024 — nas quais se constataram abusos nunca antes vistos — e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a requerimento da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) e 30 outros parlamentares, formalizou a criação da comissão parlamentar de inquérito (CPI) que objetiva “investigar a crescente influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento das famílias brasileiras”.
A medida também visa a investigação da “possível associação com organizações criminosas envolvidas em práticas de lavagem de dinheiro, bem como o uso de influenciadores digitais na promoção e divulgação dessas atividades”.
A célula parlamentar não terá início imediato, porque ainda faltam os partidos indicarem seus representantes, titulares e suplentes. Aí, sim, a CPI será iniciada. Portanto, já com o apoio do presidente Lula, em dias teremos ela debutando nas sessões do Senado.
Muito já se disse sobre a não recepção da Lei 1.579/1952 (que regulamenta as CPIs) pela Constituição Federal, mas esse ainda não é o pensamento do Supremo Tribunal Federal; ao revés, a corte diz que a norma foi recepcionada.
Neste artigo, não se debaterá a questão acima, dentre outros, mas necessário observar o que o jornalista Rodrigo Haidar verberou em reportagem na revista eletrônica Consultor Jurídico, para destacar o que houve, a partir do início da década de 1990 até os dias atuais, com a então solidificada jurisprudência dos tribunais superiores e inferiores; tudo foi posto terra abaixo.
Limites e regulamentação
Por todos, encontrar-se-á o texto do articulista intitulado “Advogados não incomodam, e sim contribuem para a democracia” [1], igualmente publicado na ConJur, no qual se aborda outros pontos de igual relevância para o Estado Democrático de Direito e, consequentemente, para a democracia.
O ser humano tem limites físicos e psicológicos para a realização de certas tarefas. Entre elas, ser interrogado ou prestar depoimento. Para aumentarmos a qualidade do processo penal e da democracia brasileira, é preciso estabelecer limites para a duração desses procedimentos.
A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXXVIII, estabelece que a todos “são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Porém, o Código de Processo Penal (CPP), tampouco aquela lei, não determinam o que seria a “razoável duração” de um depoimento em sede de processo penal ou em CPIs.
A falta de critérios temporais impede o controle da duração do processo e acaba prejudicando o réu, cita Aury Lopes Jr [2]. Afinal, com o prolongamento da ação, a presunção de inocência é enfraquecida, e o acusado ou a testemunha acabam sendo tidos como culpados perante a sociedade, mesmo sem condenação. Com a fragilização da presunção de inocência, diz Lopes Jr., há a relativização da ampla defesa e do contraditório.
Para o professor, seguindo os passos de doutrinadores do século passado e deste século, o fato de uma pessoa responder a uma ação penal e testemunhar em uma CPI já é uma pena. A demora do processo e do tempo dos depoimentos causam danos psicológicos graves nas pessoas humanas. E ao sistema de justiça criminal e criminal-administrativo, que são vistos como moroso e geradores de impunidade.
De forma semelhante, o CPP não fixa quanto tempo deveria durar o depoimento de um réu o testemunha. Se o Brasil pretende ter um processo penal democrático, como promulgado pela Constituição, deveria regulamentar a medida. Afinal, ao longo da história, prolongar procedimentos foi uma das táticas usadas por diversos regimes autoritários para conseguir os objetivos que desejavam.
Nos tribunais da Santa Inquisição, o juiz-inquisidor alongava audiências e forçava a privação do sono para obter a confissão de mulheres vistas como bruxas e daqueles tidos como hereges, menciona Guilherme Nucci [3].
Durante a ditadura militar (1964-1985), agentes da repressão provocavam intermináveis depoimentos e sessões de tortura, com o objetivo de forçar os suspeitos a confessar participação em movimentos subversivos e delatar companheiros [4]. Exaustos, muitos acabavam falando o que os militares queriam ouvir só para encerrar o suplício [5].
A tática foi repetida, com variações, pela operação “lava jato”. Como afirmada em outra ocasião [6], lavajatistas arrastavam “seres humanos, em sua maioria presos ou em vias de serem presos, às masmorras do inconstitucional sistema penitenciário, emprestando-lhes, ainda que em grau ínfimo, relevância jurídica que nunca tiveram em face do que veio à luz ao final”. O objetivo era alongar as prisões preventivas até quebrar a sanidade do acusado, fazendo com que a única saída fosse firmar acordo de colaboração premiada e falar o que se encaixava na narrativa dos inquisidores.
Os longuíssimos depoimentos também são comuns em CPIs. De olho nos holofotes e, atualmente, aproveitando a ocasião para gravar vídeos objetivando explorarem suas redes sociais, mormente em épocas eleitorais, candidatos a exercer mandatos no Legislativo usam as perguntas aos inquiridos como pretexto para discursar. E as sessões alongam-se para muito além do que seria razoável.
Vitória pelo cansaço
O interrogatório exageradamente longo e sem pausa é uma tática que busca enfraquecer e desestabilizar a pessoa. A pressão psicológica somada ao cansaço físico e emocional geram no interrogado um estado de vulnerabilidade. Ele passa a se confundir, cometer erros. Muitas vezes acaba confessando (até falsamente) apenas para encerrar o suplício [7].
O depoimento por longo período de tempo há de ser enquadrado na definição de tortura prevista na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da qual o Estado brasileiro é subscritor. A tortura, segundo a Convenção é:
“todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica” [8].
Interrogatórios devem ter duração certa, com prazos razoáveis de intervalo, tanto para as testemunhas como para os indiciados. Caso contrário, as declarações devem ser consideradas provas ilícitas, sendo inadmitidas no processo.
Recentemente, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou critérios para a admissibilidade da confissão nos meandros do processo penal [9]. O primeiro ponto da estabelecido pela corte foi o seguinte:
“A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu)”.
A tese é certamente positiva. Um avanço sobre ela seria detalhar que a confissão “feita formalmente” é aquela decorrente de depoimentos com duração certa e intervalos pré-definidos em lei.
Ora, as sessões de tribunais sempre têm prazo determinado. Por exemplo, as sessões do Plenário do Supremo Tribunal Federal ocorrem às quartas-feiras e quintas-feiras, das 14h30 às 16h. Há um intervalo de uma hora. Os ministros retornam às 17h e votam até às 18h. O roteiro é seguido à risca, salvo em casos excepcionais. Por que não fixar diretrizes semelhantes para interrogatórios e depoimentos de testemunhas?
Por mais paradoxal que possam pensar, o Código de Processo Penal Militar, editado em plena ditadura militar, 1969, prevê tal rito no artigo 19, parágrafos 2º e 3º.
Defender a duração razoável de interrogatórios de indiciados e testemunhas é valorizar os direitos e as garantias das pessoas humanas, como ordena a Constituição de 1988, fundados no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana. Esse postulado é de especial importância, tanto que é considerado um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme o artigo 1, III, da Lei Maior. A criação de limites de tempo para interrogatórios de indiciados ou depoimentos de testemunhas é uma valorização do Estado democrático de Direito.
Esta novel CPI que está por ser inaugurada daria uma grande contribuição para a democracia se aproveitasse a oportunidade para regulamentar o rito não previsto na Lei 1.579/1952, muito menos no Regimento Interno do Senado da República.
Em fecho, com o espírito democrático, ainda se confia no Legislativo, de modo que não possibilite que a CPI vire um palco circense a alimentar as eleições do segundo turno que se avizinham; e ver.
[1] VIEIRA, Luís Guilherme. “Advogados não incomodam, e sim contribuem para a democracia”. Disponível em: 23/4/2024. Acessado em 8/10/2024.
[2] LOPES, Aury Júnior. Direito Processual Penal. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. pág. 76-93.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 105.
[4] Áudios do Superior Tribunal Militar provam tortura na ditadura. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/audios-do-superior-tribunal-militar-provam-tortura-na-ditadura.html. Acessado em: 6/9/2024.
[5] Ditadura legalizou pena de morte, mas só executou opositores ilegalmente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-01/pena-de-morte-nao-foi-levada-a-cabo-mas-encobriu-execucoes-na-ditadura/. Acessado em: 6/9/2024.
[6] VIEIRA, Luís Guilherme. Nada se salva da operação “lava jato”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-01/luis-guilherme-vieira-nada-salva-lava-jato/. Acessado em: 6/9/2024.
[7] LACKEY, Jennifer. Criminal Testimonial Injustice. Oxford: Oxford Academic, 2023.
[8] Artigo 2º da Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, promulgada no Brasil pelo Decreto 98.386/1989.
[9] STJ, AREsp 2.123.334/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, 3ª Seção. Julgado em 20/6/2024, DJe 2/7/2024.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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