Consta que hoje estará em pauta o Habeas Corpus preventivo do ex-presidente Lula. Parece óbvio que a discussão envolve, inexoravelmente, aquilo que consta especialmente nas ADCs 43 e 44. Afinal, o artigo 283 é ou não é constitucional? Pelo que se viu, foi um parto esse “remédio heroico” entrar em pauta. Pensei que o HC tinha virado uma ação subsidiária. Isso é o que dá não pautar temas relevantes como esse da presunção da inocência. Tivessem já sido julgadas as ADCs e esse HC não teria se transformado em algo dramático.
Talvez eu tenha sido quem mais escreveu sobre esse tema. Só aqui na ConJur foram mais de 15 artigos e colunas (por todos, este texto). Não vou me repetir. Apenas quero contribuir com um ponto ainda pouco abordado por um ângulo jusfilosófico. Tem sido dito, para justificar o não cumprimento do artigo 283 do CPP e os dispositivos constitucionais que tratam da presunção da inocência, que a segunda instância esgota a discussão fática, restando ao STJ e ao STF discutirem as questões de direito. Isso é tão simples assim? Sustenta-se que o trânsito em julgado da facticidade já ocorreria após a segunda instância. Logo, “silogisticamente”, em não mais havendo nada a discutir sobre a prova, o cumprimento da pena deve ser iniciado. Simples assim. Ou não.
A questão é saber: é possível cindir questão de fato de questão de direito? Autores como Castanheira Neves (“toda questão de fato é sempre uma questão de direito e vice-versa, pois o direito é parte integrante do próprio caso; quando o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao fato”),[1] Perelman, Sergi Guasch (“o problema dos fatos e o problema do direito é o resultado de um verdadeiro paralogismo processual que tem ocasionado desvios patológicos de ordem teórica”), Ovídio Baptista e uma infinidade de juristas já trataram dessa falsa dicotomia e a desmi(s)tificaram. Disseram um sono não.
Essa desmi(s)tificação ocorre a partir de vários ângulos: i) a cisão é uma decorrência da velha subsunção e do silogismo – portanto, inadequada em termos paradigmáticos; ii) a partir da filosofia, mostrando a impossibilidade de separar ser e ente (sempre chamei a isso de cisão metafisica de caráter ontoteológico); iii) sob outro ângulo, Friedrich Müller mostrou a impossibilidade de cindir texto e norma. De tanto que já escrevi sobre isso, inclusive em textos em homenagem a Castanheira Neves e a Friedrich Müller, penso não ser necessário me alongar.
O que quero dizer? Que, além de incindibilidade entre questão de fato e questão de direito, há toda a fragilidade da nossa operacionalidade. Ou seja, nossa “questão de fato” não é bem tratada. Por vezes, vejo brandirem o direito norte-americano para sustentar a tese da prisão imediata. Mas isso entra no Brasil como uma vulgata. O uso do direito norte-americano como modelo é tão vulgata quanto a história da ponderação importada de uma inadequada leitura de Alexy. É só vermos como isso é feito: “De um lado, o interesse tal; de outro, como se fosse uma maçã em cada mão, o interesse tal”, eis a caricatura da ponderação à brasileira. E, fiat lux, sai a decisão. Vão me dizer que, quando alguém é condenado em segundo grau com base em uma ponderação à brasileira (katchanga), o recurso especial consegue cindir fato e direito? Ora, se fazer ponderação sem ponderar é uma fraude, como dizer que o segundo grau esgota a discussão? Me enganem, que eu não gosto…
Na verdade, há que se admitir que a tese de que é possível prender a partir do segundo grau é uma tese moral. Não é uma tese jurídica. A tese moral é a de que “devemos combater a impunidade”. Ou devemos “atender o clamor das ruas” (o que é isto — o clamor?). Mas, pergunto: uma lei e a própria CF podem ceder a esses argumentos? Então podemos substituir a lei pela moral ou por argumentos de clamor social, que é tão fácil de captar como dizer que em 193 países a presunção da inocência não é como no Brasil? Sim? Não? Isso é verificável?
Com o declínio da doutrina, as práticas judiciárias institucionalizaram o uso de argumentos finalísticos, como aquilo que venho denominando de Target Effect (Fator Alvo): atira-se a flecha a esmo e depois pinta-se o alvo. Margem de erro: zero. Desculpem-me, mas um país que confunde direito penal com política social de controle de massas está com seríssimos problemas de compreensão sobre o próprio sentido do Direito. Pergunto: por que ainda temos cursos de pós-graduação ensinando coisas que vão na contramão do que se pratica todos os dias no judiciário? Hoje o professor de direito constitucional virou um subversivo, porque ensina coisas como “garantias que podem atrapalhar” o “combate à impunidade”. Defender a legalidade virou um ato revolucionário.
Mas existem argumentos que vão mais longe na ânsia de defender a prisão já a partir do segundo grau. Dia desses o advogado José Paulo Cavalcanti Filho disse que, dos 194 países do mundo, só o Brasil é que teria esse privilégio. Para começar, doutor José Paulo, talvez o Brasil tenha “isso” porque…está na Constituição (aliás, no referido texto ele nem fala no artigo 283 do CPP — por que será?). Como professor de Direito Constitucional, ele deve saber disso, pois não? Fico imaginando a pesquisa essa que constatou ser o Brasil o único que possui esse “privilégio”. Poxa: de 194, países, 193 prendem logo, já a partir do segundo grau? Como será o sistema do Butão? Dá bem para comparar o sistema processual do Afeganistão com o Brasil? O sistema da Arábia Saudita é que deve ser bom… E o que diz a Constituição do Nepal sobre “prisão após segundo grau”? Onde está essa pesquisa? Deve ser como a pesquisa que diz que todos os dentistas brasileiros preferem Colgate. E se eu colocar um “não”, o que muda?
E mesmo que existisse tal pesquisa, pergunto: como comparar ovos com caixa de ovos (me remeto a Bobbio)? E dizer que a Alemanha executa já em segundo grau não é bem assim. E, vamos lá: mesmo que fosse, há peculiaridades que o professor José Paulo desconhece ou não quis contar, como o modo como são julgados os processos em primeiro e segundo graus e os recursos e seu recebimento etc. Por que não falar de Portugal, cujos processos de primeiro grau já são julgados por três juízes? Dá para comparar ovos com caixa de ovos? E nos EUA? Quer comparar? Decisões de júri ou de segundo grau de lá com os julgamentos daqui, em que a denúncia é recebida em três linhas com base no in dubio pro societate (que deve estar na Constituição do Burundi, mas na nossa, não) e ainda se inverte o ônus da prova… Sem esquecer que o júri no Brasil (tem quem sustenta que decisão do júri já deve ser executada desde logo) decide por íntima convicção. Incrível. Intima convicção. O réu é condenado por íntima convicção (“porque sim”) e a matéria “de fato” está esgotada? E ainda vamos comparar os 193 (sic) países com o Brasil? Como será que funciona em Pasargada?
Eis o ponto. Enquanto no Brasil: a) termos julgamentos invertendo o ônus da prova, b) termos comportamentos como o juiz do Ceará que esculachou e fez bullying com a advogada, c) termos juízes que, de antemão, negam acesso da defesa às provas, e) termos conduções coercitivas até de testemunhas, f) quedarmo-nos silentes quando um juiz manda o advogado sair da sala na hora em uma testemunha for depor, g) um tribunal regional federal declarar que o MP não precisa ter isenção para processar alguém; h) membros do MP sustentarem, em peças processuais, que prova é uma questão de crença e probabilismo, i) e uma ex-ministra que foi corregedora do STJ diz que viu vazamentos e nada fez; j) não nos importarmos quando uma juíza — que faltou à aula sobre princípios — dizer não aplicar a insignificância porque não está na lei e… na sequência, o leitor pode acostar milhares de narrativas…, enquanto tivermos o quadro acima, esse ensino jurídico, esse tipo de interpretação de direitos e garantias, de que modo é possível sustentar que há uma cisão entre questão de fato-questão de direito?
Pergunto: é possível discutir, em recurso especial ou até mesmo extraordinário, uma questão jurídica desindexando a questão de fato que “já se esgotou”? Sim, sei que a Súmula 7 (muito antiga) já institucionaliza esse procedimento. Por ela, diz-se que não se pode examinar matéria de fato. Claro. Só que, para dizer isso, tem de se saber qual é a questão de fato. Dia desses, li uma decisão do STJ que aplicou a Súmula 7 dizendo que a decisão do conselho de sentença foi contrária à prova dos autos, sendo que a corte de segundo grau se baseou nos depoimentos colhidos durante a instrução probatória, assim como na causa mortis descrita no exame de corpo de delito… E não conheceu do recurso. Ou seja, para saber que a matéria tinha sido examinada e bem examinada, o STJ não examinou a matéria fática? Então: para dizer que algo não é, tenho que ver esse “algo”, pois não? A desindexação de fato e direito não passa de mera ficção.
Escrevi sobre a impossibilidade dessa cisão de há muito (20 anos, talvez). O intérprete não se depara com fatos desnudos para depois colocar o sentido. Do mesmo modo, o exame de um caso é impossível cindindo questão de fato de questão de direito. Por que o STF faz repercussão geral? Baseado na repercussão que a “questão de direito” tem sobre todo o sistema jurídico e a sociedade. Repercute onde e sobre o quê? Ou seja, essa análise de repercussão já é uma “questão de fato”, isto é, a questão de direito vem eivada de facticidade.
Vamos a um exemplo corriqueiro: prova ilícita é violação de lei federal e da CF. De que modo, em sede de recurso especial ou extraordinário, vamos discutir prova ilícita sem discutir se existiu ou não o seu uso? Isso é fato ou direito? Quanta ficção, pois não? E quando o tribunal diz que não há nulidade sem prejuízo (e dito em francês “pas de nullité”… fica mais chique ainda), pergunto: quando o STJ ou o STF dizem isso eles se baseiam em que tipo de “questão”?
Ficções da realidade e realidade das ficções. A dogmática jurídica parece que esqueceu que um homicídio é o nomen juris de tirar a vida. Entrar em uma casa dando pontapé na porta é o quê? Ora, quando o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao fato. Portanto, pé na porta é abuso de direito. Onde está a questão de fato, senão jurisdicizada?
Portanto, a execução da pena já a partir do segundo grau necessita de outra justificativa. De todo modo, para quem defende a prisão em segundo grau como decorrência “lógica” da condenação em segundo grau, peço que se coloque no lugar de um réu cuja denúncia foi recebida em um formulário preenchido com x e um in dubio pro societate e teve invertido o ônus da prova, devidamente reconhecido em segundo grau. Isso acontece centenas ou milhares de vezes por dia. Como procurador de Justiça, a estatística de meu gabinete mostrou que, em regra, 80% dos processos que chegavam do segundo grau vinham “bichados”. Com extremo esforço, conseguia reverter, com parecer favorável ao réu, um percentual entre 30 e 40%. E o restante? O que acham?
Então: esgotou a matéria de fato? Que pena. A facticidade transitou em julgado? Que pena. Vai direto para o ergástulo. Como se está dizendo, a prisão em segundo grau é decorrência lógica…
Por tudo isso, fui um dos autores e subscritores da ADC 44 que a OAB levou ao STF. Por ela, pedimos apenas que o artigo 283 do CPP seja lido como está escrito. Afinal, o CPP não é como a Bíblia, toda escrita em parábolas, metáforas e metonímias. O CPP é uma lei. E leis têm limites interpretativos.
[1] A Súmula 7 do STF entra no mesmo patamar da crítica que Castanheira Neves fez aos assentos portugueses e à cisão “questão de facto-questão de direito”. Já no inicio dos anos 90 – logo após a CF/88 – fiz duras críticas a essa Súmula, exatamente por cindir fato e direito. Propunha, já então, a sua expunção do sistema.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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