Por Vinícius Portella Castro
Um Estado Democrático de Direito não pode ter masmorra insalubre e superlotada para pobre e negro. Isso deveria ser trivial, consenso mesmo entre os centristas e liberais. Mas a gente mora na mais íntegra tradição escravocrata do mundo — território destinatário de 43% de todo o trafico humano do atlântico — um país onde liberalismo não é nem o verniz polido da brutalidade colonial e capitalista que ele foi e ainda é no primeiro-mundo.
Esse primeira frase sempre vinha na minha cabeça depois da eleição do Bolsonaro, quando ouvia de amigos que a nossa democracia estava em perigo. A democracia que executa e tortura mais gente do que na época da ditadura? Conte-me mais sobre esse perigo. No fundo, o que esse medo dizia, querendo ou não, era: agora eles vão atrás de gente da classe média de novo, E estudantes universitários! Isso a gente não pode tolerar.
Estou falando, entendam, dos meus pares, de pessoas de esquerda e de centro que jamais votariam no câncer bulboso que hoje nos preside, e que sempre concordaram comigo quando criticava o sistema prisional e a polícia. Mas o meu ponto é este, justamente: mesmo nós, que nos consideramos antifascistas, estávamos acostumados com o status quo. Acostumados com um sistema prisional que recebe milhares de jovens que não são violentos e os devolve, quando devolve, brutalizados e membros de “facções”. Acostumados com relatos diários de tortura e execução de uma polícia mal paga e mal treinada pra segurar um foguete nas mãos. Era isso, vejam bem, aquilo a que dávamos o nome de normalidade democrática.
Quase sempre que um petista vinha falar da prisão de Lula (absurda na época, hoje sabemos que também criminosa) a minha reação era parecida. Sem dúvida que foi muito grave, ainda mais pela intervenção nas eleições, mas como dizer que essa é a gota d’água de um sistema que produz chacinas cotidianas nas ruas e nos presídios? Com que cara lavada podemos dizer que foi isso que fez a gente pular de uma democracia pra um Estado autoritário?
A violência estatal nas ruas e nas prisões é a grande contradição da nossa retomada democrática, muito mais do que a corrupção. Nos últimos 30 anos, o Brasil teve avanços em vários campos, ganhos institucionais reais em praticamente todas as áreas e ganhos sociais consideráveis durante os governos do PT. E isso se deu ao mesmo tempo em que o tecido social e institucional se esgarçava cada vez mais com a violência, e a população carcerária continuava sua escalada vertiginosa (desde o início da década de noventa, puxado pelo estado de São Paulo) até os mais de 800 mil presos atuais. As chamadas facções criminosas são uma cria direta desse sistema e de sua falência generalizada, qualquer um que saiba fazer 2+2 pode constatar.
Esforços importantes na direção contraria existem, claro, e devem ser valorizados. Temos o Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, criado em 2013, mas ainda com vastas dificuldades de implementação em âmbito nacional, temos o trabalho duro de defensores públicos e entidades não governamentais, além de movimentos populares como As Mães de Maio e a Frente Nacional pelo Desencarceramento fazendo o possível para aliviar parte desse sofrimento sem fim. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito de preso submetido a condições degradantes de ser indenizado, um gesto insuficiente mas positivo e que talvez pese mais nos governantes do que qualquer ímpeto humanitário.
Inúmeros artigos da Constituição não são cumpridos nem de longe, a gente sabe bem. É tão distante a realidade brasileira da linda promessa programática da Constituição que a gente se acostuma com esse intervalo. Como se os direitos elencados ali fossem pouco mais do que uma sugestão, ou uma carta vaga de intenções. Ainda assim, eu diria que há uma diferença fundamental entre a inconstitucionalidade do sistema prisional e todas as outras.
O Judiciário não tem como oferecer saúde e moradia para todos os brasileiros com uma canetada, assim como não pode fazer brotar escolas ou dotações orçamentárias onde quiser. Mas o Judiciário poderia, sim, se assim o quisesse, soltar pelo menos um terço da massa carcerária hoje, focando nos provisórios e nos não violentos. Isso seria tão simplesmente um cumprimento razoável da lei. O próprio STF admitiu, em 2015, que o nossos sistema carcerário está num “estado inconstitucional de coisas”. O ministro Lewandowski, na época, perguntou: “Reconhecemos as inconstitucionalidades e violações de direitos humanos nas prisões e agora vamos mandar mais gente para este verdadeiro inferno?” É claro que vamos.
E por quê? Pra começo de historia, porque o brasileiro médio está sedento de sangue e de vingança. E porque o nosso Judiciário é estruturalmente um poço classista de privilégio onde se fala outra língua e se tem a cara-de-pau de pedir auxílio para comprar ternos em Miami. Mas a resposta mais doída é que eles não fazem porque nós não demandamos. Não digo só os bolsonaristas, que chegam a ter gozo com o nosso grotesco. Digo os de centro, os de centro-esquerda, os formadores de opinião e a morta-viva sociedade civil. A gente critica, a gente chia aqui e ali. Mas a gente não age, nem de longe, à altura do que estava e ainda está acontecendo.
O que diríamos dos alemães se eles tivessem, décadas depois do holocausto, judeus amontoados em galpões e containers, dormindo com ratos, execuções estatais quase públicas? É basicamente isso o que acontece no Brasil. Depois de 300 anos de escravidão, 130 anos depois da abolição, temos depósitos infernais de carne lotadas de negros e pardos e governadores e presidentes cristãos que tripudiam de jovens assassinados. A gente só não acha que é a mesma coisa porque somos, afetivamente, racistas. Estamos anestesiados diante da cena. É fácil comparar Bolsonaro com Hitler. Quero ver a classe média alta e a elite brancas admitirem que somos, todos, há anos, alemães vivendo quietinhos sob o Reich, complacentes, vendo o pau comer longe dos nossos.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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