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Direitos da mulher, interrupção da gravidez e a imprescindível dignidade

Direitos da mulher, interrupção da gravidez e a imprescindível dignidade

Uma das questões que mais preocupa àqueles que pretendem se distanciar do dia a dia, abrindo espaço à reflexão serena, é buscar os eixos do chamado “caráter da época”, é dizer, os elementos centrais ao redor dos quais transcorrem as inquietações e dificuldades dos seres humanos.

Detectar tais elementos pode resultar em que abandonemos a linguagem hermética e que o Direito seja visto sob cores mais atraentes.  Alerto que essa possibilidade de pensar, de agir com liberdade, que é o que nos distingue dos demais seres vivos e que constitui o cerne do conteúdo jurídico da dignidade humana, parece ser algo cada vez mais estranho, e quando se exercita a reflexão parece que incomoda, e muito, a uma constelação de pessoas cujo hábito, começando por alguns membros do Executivo federal, é abandonar o equilíbrio das razões. 

Pois bem, o eixo ao redor do qual giram algumas das maiores inquietações, em termos de saúde, liberdades, militarismo, ação do Estado, Fake News e outras tantas, continua a ser o tema da imprescindível dignidade, que hoje no Brasil toca não só a questão da equidade de gênero senão que se entrelaça com fato recente, que gerou uma espécie de combate moral sobreposto, precisamente, por aqueles que não respeitam cânones constitucionais nem limites legais.

A dignidade humana, que como já tentei demonstrar no meu Patrimônio Genético Humano e sua Proteção na Constituição Federal de 1988, [1]continua a me parecer um autêntico fator de precompreensão de qualquer ordenamento jurídico minimamente desenhado para o respeito aos direitos fundamentais, tem de ser  necessariamente exposto, explicado com todas as letras e até gritado abertamente.

Lembro que o princípio, estampado no artigo 1º, III da Carta, no começo destes mais de trinta anos de constitucionalismo pós-ditadura, parecia tão evidente que poucos ousavam explicá-lo com propriedade; logo a doutrina brasileira o abordou com notória profundidade –[2] e ficou tão em voga que corríamos o seríssimo risco de banalizá-lo porque, sem dúvida, se fazemos o caminho de volta a partir de um ponto de inflexão de qualquer direito fundamental, veremos que na sua matriz está, precisamente, a dignidade humana.

Hoje, nesta dialética de retrocesso à qual assistimos no país, quando a retina continuamente enxerga atentados e agressões a seu conteúdo, sendo atingida tanto no sentido subjetivo – condição humana de existir, de liberdade, igualdade e responsabilidade, pelo fato de ter capacidade de raciocinar, fazer escolhas e ter um horizonte ético – e no sentido objetivo – reconhecimento de que a existência implica condições de vida que garantam a possibilidade da emancipação humana, partindo da satisfação da necessidades primárias – não há como fugir do tema.  

Indo aos fatos: primeiro, há que se pensar sobre a maneira como a mídia fez a cobertura da situação de uma criança de 10 anos cruelmente violentada por familiar; de outra banda, a forma como segmentos da sociedade parecem não compreender o que envolve tamanha agressão. Finalmente, a ação do Estado, que através da Portaria 2282 do último 27 de agosto, na  sequência do acontecido, simplesmente, ordena: É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”  e depois que “Os profissionais mencionados no caput deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime, nos termos da Lei Federal nº 12.654, de 2012”.

A Portaria inclui, ademais, dentro do procedimento, que caso “a gestante deseje” – como se a possibilidade de dissenso resultasse em redução, de algum modo, do constrangimento – “a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia (…)”.

Tentaremos articular nossas opiniões nesses três âmbitos. De início, a maneira como o constituinte aborda a proteção da criança, dos adolescentes e jovens no Brasil, com especial deferência no artigo 227,  parte da percepção de que especialmente a criança, como no caso que ora comentamos, é um ser em desenvolvimento que precisa, acima de tudo, de proteção. Há, obviamente, uma condição de vulnerabilidade maior quando comparada a adolescentes e pessoas adultas. Bem por isso, muito embora a informação não possa sofrer restrições nos termos do art. 220, o próprio caput nos informa a necessidade de que os meios de comunicação observem “o disposto na Constituição”, o que implica atender às exigências do 227.  

Disso resulta, em consonância com a unidade da Constituição e sua interpretação como sistema normativo, que a criança deve ser colocada a salvo de qualquer forma de exposição que a coloque em risco, a violência, crueldade ou opressão. Por isso a ombudsman da Folha de São Paulo, no dia 23 de agosto, foi certeira ao afirmar que apesar de todo o tratamento criterioso dado no momento, foi um erro dar publicidade ao nome do hospital no qual o procedimento médico tinha sido realizado.

A atuação errática propicia uma crítica legítima. Porém, o que ocasiona repulsa é a maneira como nas redes sociais a falta de escrúpulos gerou a difusão ampla ao fato, o que incluía nomes, dados pessoais, versões variadas, obrigando a que a Defensoria Pública do ES tivesse que requerer liminar para retirar toda e qualquer manifestação sobre o caso. Quando o provimento judicial foi obtido, a exposição em Facebook. Google e Twitter já tinha resultado em inevitável constrangimento e no ferimento à dignidade.

Em um Estado de Direito, fundado em valores e fins constitucionalmente postos, o que ou quem autoriza a que os agentes dessa conduta ajam incluso argumentando que sua ação é correta? Investem tempo, diligência e recursos para desafiar o ordenamento em assunto que embora possa lhes parecer polêmico, está legalmente autorizado.

Vou considerar duas premissas para avançar na opinião e entrar finalmente na Portaria: a primeira, que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são direitos humanos, tem respaldo constitucional e são perfeitamente compatíveis com o status de dignidade que a todas elas acoberta. Além disso,  esses direitos e a equidade de gênero, bem como a emancipação da mulher e sua igualdade real, plena, não são somente a constatação de que se vive em democracia, senão em cenário civilizatório do qual aproveitam não somente elas, mas a sociedade como conjunto de relações entre seres humanos, como coletivos de seres pensantes.

A segunda, que a margem de discricionaridade que tem o Estado para configurar políticas em matéria de aborto é limitada, especialmente quando se trata no âmbito penal,  porque não pode nem retroceder em direitos fundamentais, nem desconhecer que a dignidade da mulher implica que não seja tratada como mero instrumento de reprodução ou procriação de vidas, uma ferramenta ou mecanismo a disposição para ser “usada” sexual ou reprodutivamente. 

Vale dizer, por isso, que com toda razão o artigo 128 do Código Penal autoriza tanto o aborto terapêutico quanto o sentimental, é dizer, no primeiro caso quando corre risco de morte a gestante e no segundo quando a gravidez decorre de estupro. E ainda, na ADPF n. 54 o STF já se pronunciou, também acertadamente, pela possibilidade de interrupção de gravidez em caso de anencefalia fetal.

Se se trata de um combate moral, a ação dos que tentaram invadir o hospital e soltaram argumentos em redes não expressam nenhum compromisso com as consequências dos seus atos. É dizer, não há como pontuar que essas ações maximizaram boas consequências e minimizaram maus resultados e que ao final a sociedade foi protegida ou amparada de um mal. Tampouco numa perspectiva deontológica consegue-se evidenciar uma qualidade intrinsecamente correta em atos tendentes a expor a uma pessoa de curta idade, vulnerável e já cruelmente violentada. Simplesmente não faz sentido essa atuação.  

Se vamos ao jurídico, com relação à Portaria 2228, de infeliz redação e conteúdo, convêm pontuar algumas questões que são essenciais. Continua a me parecer que o conteúdo jurídico da dignidade humana implica reconhecer os três graus do ser: a) a coisa, que tem preço, que pode ser usada, vendida, alugada, submetida a nossa vontade, desejo e caprichos se for nossa. Coisa é o inanimado, o ser sem unidade que quando quebra ou lesa nada nela morre ou é ferido; b) o indivíduo, dotado de vida, que não é a espécie humana e por isso não tem condição de traçar um horizonte ético, que domesticamos e que, inclusive, por estarem vivos merecem, com justeza e razão, tratamento jurídico diferenciado das coisas; c) e finalmente, a pessoa, indivíduo da espécie humana, dotado de capacidade transformadora em função da sua liberdade, que não pode ser submetido a tratamento desumano, ou seja, reduzida a segundo grau, e muito menos coisificada, usada e descartada. Seu horizonte ético, lhe permite optar e, de fato, no seu processo vital opta religiosa, filosófica, politicamente. Que tem orientação sexual, mas que também faz opções e escolhas sobre com quem, como, para que, porque e sob que condições realiza seus atos de intimidade, que demonstra amor e projeta seu afeto.

No caso do estupro esse exercício de poder do agente da conduta criminosa coisifica à vítima, a reduz ao terceiro grau, a submete a “tratamento degradante”, proibição expressa no artigo 5º, III da Carta de 1988, torna ao ser humano algo de uso e descarte. É a essa vulnerabilidade e coisificação E a essa gravíssima lesão á dignidade humana à qual deve prestar atenção o legislador, ou aquele que age em nome do Poder Público, quando pretenda prescrever condutas.

Na hermenêutica do caput do artigo 5º, que trata de inviolabilidade da vida, se deve considerar o “processo vital”, que tem diferentes tratamentos normativo tendo em vista o estágio de desenvolvimento do ser humano. Destarte, por exemplo, o constituinte de 1988 deu proteção especial a crianças, adolescentes e idosos dentro do capítulo da “Ordem Social”.  

O direito à inviolabilidade implica a titularidade da pessoa humana, enquanto a proteção da vida inclui aqueles que ainda não tem essa condição. O direito infraconstitucional para excluir a punição, segue as diretrizes de não absolutividade, máxima eficácia e restringibilidade excepcional quando o processo vital se apresenta, caso a caso, em rota de colisão com outros processos vitais. É dizer, quando o direito exige que seja observado, interpretado e aplicado em harmonia com o restante de direitos constitucionais. Por isso, reitero, fez bem o legislador ao admitir que em caso de perigo de morte da gestante deve este processo vital da pessoa humana preferir ao daquele que está por nascer.

E reitero que fez bem ao admitir a hipótese de aborto em caso de estupro. Isso porque a degradação da mulher, sua coisificação, não podem prosseguir no tempo. Entre aquele processo vital e a dignidade humana este valor matriz dos direitos se afigura insuperável. Imagine-se, portanto, o caso de uma criança vítima de tal conduta!

A Portaria 2228, com a pretensão de se posicionar em defesa da vida e da contenção de fatos criminosos, atenta mais contra a liberdade pessoal e a autonomia do ser humano decorrentes da dignidade, que devem continuar, no caso e especialmente da gravidez decorrente de estupro, sem essas interferências.

Esta época é complicada porque se pretende fragilizar a ética. Em perigo está a pessoa, nesse falso combate moral encampado por alguns. E em risco está sempre, quando a sombra do autoritarismo permanece, a imprescindível dignidade, por supuesto.


Notas e Referências

[1] Tese de doutorado defendida no 2003 e publicada no ano 2004 em São Paulo, pela Editora Método.

[2] Me reporto, dentre outras, às obras de Ingo Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001 e de Daniel Sarmento, Dignidade da Pessoa Humana. Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. BH: Fórum. 2016. 

Artigo publicado originalmente no Empório do Direito.

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