Por Karla Monteiro e Mateus Araújo
Perto de completar 95 anos — faz aniversário no próximo 11 de abril —, Almino Affonso diz em tom de piada que, às vésperas dos 60 anos do golpe militar, o telefone “milagrosamente” voltou a tocar.
“Descobriram que sou a última testemunha”, diz, em referência ao fato de, entre os membros do primeiro escalão do governo deposto em 1964, ser o único ainda vivo.
Naquele ano, ele estava ao lado do então presidente João Goulart, primeiro como ministro do Trabalho e Previdência Social e depois como deputado federal na liderança da bancada do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) na Câmara.
Hoje filiado ao PSB (Partido Socialista Brasileiro) do vice-presidente Geraldo Alckmin, Almino evita criticar a decisão do presidente Lula de suspender os eventos oficiais em memória do golpe.
“No instante em que você representa o Estado, irradia relações favoráveis ou desfavoráveis. É prudente que quem tenha cargo público de primeira grandeza omita referência a algo que tem reflexo em A, B ou C”, diz.
Mas ele não se esquece e identifica as diferenças entre os acontecimentos de 1964, que sepultaram a democracia por 21 anos, e a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Lá atrás, ressalta Almino, a cúpula militar conspirou junto com setores da sociedade civil para derrubar o governo eleito, com apoio externo. “A história é longa e entra uma coisa chamada Estados Unidos.”
Já o ataque bolsonarista aos Três Poderes seria — quem sabe? — um pastiche mal acabado.
Quando Jair Bolsonaro foi eleito, em 2018, Almino — que na ocasião votou em Fernando Haddad (PT) — disse à Folha de S.Paulo que seria exagero chamá-lo de golpista.
“Ele era ninguém. Literalmente ninguém”, justifica-se. “Basta dizer que foi deputado num dos períodos em que eu estava na Câmara e nunca o vi lá. Quando fui entrevistado, disse apenas que não havia nenhum elemento para se dizer que ele fosse golpista.”
Hoje, sua opinião mudou. “Se alguém disser que Bolsonaro não tem nada a ver com o episódio todo, aquele quebra-quebra [em Brasília], é um imbecil.”
O mais dramático telefonema
Há muitas fotografias no apartamento de Almino em São Paulo. “Minha namorada, em todas as fases do nosso relacionamento”, diz, apontando as fotos da esposa, Lygia de Britto Álvares Affonso, falecida há 17 anos.
Entre os retratos, uma foto com o músico Sérgio Britto, dos Titãs, um de seus filhos, e o registro de sua posse como ministro do Trabalho, cargo que ocupou entre fevereiro e junho de 1963.
Quase um ano após sua saída da pasta, relembra Almino, ele recebeu o mais dramático telefonema da sua vida. Era quarta-feira, 1º de abril de 1964. Corrido do Palácio das Laranjeiras, João Goulart o convocava para uma reunião na Granja do Torto.
O clima na residência oficial não podia ser pior. Jango encarnava o desânimo, com o “terno amarfanhado” e a “barba por fazer”. Estavam ali também Tancredo Neves e outros deputados.
A insurreição militar já tinha se alastrado pelos quartéis, aderindo à marcha das tropas do general Olímpio Mourão Filho, que haviam partido de Minas Gerais na manhã anterior.
Enquanto se debatia o conteúdo de um manifesto pela democracia, o general Ladário Telles, comandante do 3° Exército, avisou que o presidente deveria voar para Porto Alegre, pois Brasília se convertia rapidamente numa ratoeira.
Ficaram na Granja do Torto apenas Maria Teresa Goulart, esposa do presidente, e seus dois filhos, João Vicente e Denize. A ex-primeira-dama conta ao UOL que Almino sempre foi fiel ao presidente: “Ele esteve presente nos mais difíceis momentos”.
O então líder da bancada acompanhou Jango até o aeroporto, onde dezenas de parlamentares chegavam para abraçar o presidente e dizer palavras de solidariedade.
“Mas, nada me enganava”, lembra Almino no livro “1964 — Na Visão do Ministro do Trabalho de João Goulart” (Imprensa Oficial, 2014), lançado por ocasião dos 50 anos do golpe que o levaria ao exílio. “Por trás da emoção, havia a descrença no amanhã.”
Na saída do aeroporto, ele ouviu de Tancredo Neves uma frase que jamais esqueceu. “Ele disse: ‘Faz 10 anos, eu me recordo da reunião do presidente Getúlio Vargas com o ministério e logo mais a tragédia [do suicídio]. Fico a me perguntar se é a última vez também que me despedi do presidente João Goulart.’ Eu disse: ‘Tancredo, para de dizer coisas desajustadas’. E ele respondeu: ‘É que você é jovem, não é capaz de perceber que se repetem as coisas.'”
Três vezes ‘canalha!’
Depois de se despedir de Jango, Almino seguiu para o Congresso. Convocada pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, uma sessão extraordinária estava prestes a começar. Ele se acomodou ao lado de Tancredo.
Logo o deputado Doutel de Andrade trouxe ao plenário uma circular emitida pelo chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, informando aos congressistas que João Goulart voava para Porto Alegre.
“Eu ainda sinto ódio”, conta Almino, recordando o sentimento que o dominou no instante em que Moura Andrade pediu a palavra e declarou vaga a Presidência da República — alegando falsamente que o presidente havia abandonado o governo. Na memória do ex-ministro, ficaram dois gestos de resistência. A voz de Tancredo gritando: “Canalha! Canalha! Canalha!”. E o deputado Rogê Ferreira que, valendo-se de sua destreza de atleta, rompeu a barreira da guarda pessoal e, frente a frente com Moura Andrade, cuspiu nele.
“Foram naquela noite dramática os únicos protestos que pudemos ter”, conta o ex-ministro.
Almino Affonso revela, ainda, uma informação inédita: no início do regime militar, Castello Branco, ditador de 1964 a 1967, fez chegar a ele no exílio o recado de que poderia voltar ao Brasil.
Almino se negou: “Agradeci, mas disse que não poderia fazer isso enquanto tantos dos meus amigos estavam exilados”.
Quando Jango morreu, em 1976, na Argentina, seu ex-ministro do Trabalho já tinha retornado ao Brasil, após passar 12 anos entre a atual Sérvia (ex-Iugoslávia), Chile, Peru e Argentina. “Foi ele que me ajudou a vencer a briga para conseguir fazer o enterro em São Borja”, lembra, agradecida, Maria Teresa Goulart.
“Os militares não queriam nos deixar cruzar a fronteira com o corpo. Nunca me esqueço do Almino, sempre leal, mas dizendo a verdade, sem puxar o saco do Jango.”
Na escrivaninha do escritório da última testemunha do golpe repousam folhas manuscritas por Almino. “É um livro que estou escrevendo sobre minha história familiar, política e de exílio”, conta. “Não sei se aguento suportar vivo até terminá-la, né?”, ri ele.
“É mais que uma autobiografia, mas muito geral. Essencialmente, tem minha história com minha mulher, com quem vivi desde os 17 anos de idade, 50 anos de casados.”
Publicado originalmente no UOl Tab.
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