Por Hélio Freitas de Carvalho da Silveira, Francisco Brito Cruz e Marcelo Santiago de Pádua Andrade
Em 2016, a campanha vitoriosa à presidência dos Estados Unidos havia contratado uma empresa que possuía milhares de perfis de curtidas no Facebook para direcionar anúncios customizados a eleitores indecisos. Na pré-campanha brasileira de 2018, dois candidatos foram flagrados enviando anúncios na rede a partir de um banco de dados obtido junto à Serasa Experian, possivelmente disponibilizado por agências de publicidade.
Na corrida presidencial do mesmo ano, os escândalos de “disparos em massa” no Whatsapp tomaram as manchetes: acusou-se tanto o vitorioso como o maior gastador (Henrique Meirelles) de usar cadastros para enviar spam diretamente ao aplicativo preferido dos brasileiros. Apesar de diferentes, essas histórias têm um denominador comum: o uso decisivo de dados pessoais por campanhas eleitorais, evidenciando como o seu uso pode embaralhar o jogo democrático. Essa tendência se faz cada vez mais presente, como vemos nas pesquisas publicadas pelo InternetLab e por outros centros dedicados a monitorar campanhas digitais.
A lógica é simples. Quem conhece os hábitos de alguém ganha poder de influência sobre suas ações – muitas vezes sem que esse alguém perceba. Assim, da mesma forma que é uma vantagem a anunciantes de chocolate saberem quais os doces preferidos de uma pessoa ou o horário que ela costuma sentir vontade de assaltar a geladeira, saem na frente os candidatos que sabem o que mais sensibiliza o eleitor, ou os que conseguem reunir formas de atingi-los em momentos estratégicos.
Se é verdade que isso sempre foi assim para qualquer publicidade, é também verdade que a propaganda nunca usou e se estruturou tanto nessa direção quanto agora. Vivemos na era da publicidade comportamental, microdirecionada, customizada; estamos na era do big data e da penetração recorde da internet e de smartphones na vida dos brasileiros. Não haveria como ser diferente com o marketing político.
Na realidade que a publicidade está em pleno processo de mutação, é preciso, no plano da propaganda política, proteger a privacidade e os direitos do eleitor sobre seus dados pessoais. Esse direitos se traduzem na manutenção e respeito da autonomia cidadã, e na preservação da integridade do processo democrático. É um tema urgente.
Estamos no caminho certo. Depois de quase uma década de debate, o Brasil aprovou, em 2018, uma Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Sob uma perspectiva de direitos fundamentais, esse marco regulatório é central para garantir os direitos dos brasileiros em uma realidade cada vez mais digital e movida a dados, servindo para limitar, controlar e fiscalizar esse poder que nasce do uso de dados.
Porém é necessário chamar atenção para como a LGPD será recebida pela regulação eleitoral. Em 2018, a Lei das Eleições e a regulamentação determinada pela Justiça Eleitoral autorizaram anúncios pagos na internet, mas silenciaram sobre como controlar e fiscalizar o uso de cadastros de eleitores, e como empresas e indivíduos que possuem dados pessoais podem se relacionar com campanhas. Ao invés disso, repetiu um conjunto de regras defasado e ajustado para questões da década passada (como questões de cadastros de emails e endereços de eleitores).
Nas suas decisões também silenciou sobre o assunto, apesar de ter sido extremamente draconiana na limitação de táticas pertencentes ao jogo democrático, como anunciar em páginas de resultados de busca pelo nome dos candidatos adversários. Ao mirar na proteção da igualdade de chances e da autonomia do eleitor acertou no cerceamento à liberdade de expressão.
Não é preciso reinventar a roda. A LGPD já oferece balizas importantes para tomarmos conta da privacidade dos eleitores, dando a eles mais controle sobre suas próprias informações e proteções em face de usos abusivos. O que falta é que as reformas na lei eleitoral feitas pelo Congresso e as resoluções editadas pela Justiça Eleitoral também abracem esse tema. Assim, para além da conturbada (e capturada) discussão sobre “fake news”, regras de proteção de dados devem ser a primeira de uma série de medidas práticas sobre as novas campanhas digitais focada em direitos fundamentais dos eleitores.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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