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Em três anos, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país

Em três anos, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país

Por Thaiza Pauluze

Rio de Janeiro, São Paulo e Pará lideram ranking, e 69% das vítimas são negras

Todos os dias, ao menos duas crianças e adolescentes são mortos pela polícia no Brasil.

Alguns ganham as páginas e capas dos jornais, como o menino João Pedro Mattos, 14, morto dentro de casa em São Gonçalo, na Baixada Fluminense, em maio; a menina Ágatha Félix, 8, morta no Complexo do Alemão, na zona norte carioca, em setembro do ano passado; ou o menino Kauan Alves, 16, atingido no rosto na manhã do último Natal durante uma ação da Polícia Militar paulista para reprimir um baile funk no bairro do Jabaquara, zona sul da capital.

Entre 2017 e 2019, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país. O número de mortes vem crescendo. Em 2017, representavam 5% do total das mortes violentas nessa faixa etária.; no ano passado, já eram 16%.

O levantamento exclusivo foi feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido da Folha e considerou só as unidades da federação que tinham informações sobre a idade das vítimas nos três anos analisados: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo.

Foram classificados como crianças e adolescentes aqueles que tinham entre 0 e 19 anos, seguindo recomendação do Unicef (Fundo das Nações Unidas para Infância) e da OMS (Organização Mundial da Saúde).

A maioria dessas mortes não chega a ser noticiada, embora elas inflem as estatísticas. Foi o caso de Matheus, 19. Um único tiro, à queima-roupa, matou o adolescente que sonhava ser jogador de futebol e dar uma casa para a tia, que o criou como mãe. Mas, como a realidade era o desemprego, ele trabalhava de mototaxista a poucos metros de sua casa, na Pavuna, zona norte do Rio.

Estava parado, sentado na moto, quando veio o disparo que atingiu o seu tórax, naquela tarde de junho de 2019. Segundo testemunhas, não havia operação ou tiroteio e os policiais chegaram a falar “caraca, matamos o mototáxi!”.

Na delegacia, o sargento disse que matou sem querer e quis cumprimentar o pai do adolescente, que se negou, respondendo: “como vou apertar sua mão se você matou meu filho?”.

“Nem dinheiro para o enterro a gente tinha. Tivemos que fazer uma vaquinha”, conta a tia.

Segundo a família, não foi feita perícia no local e o policial não foi julgado e segue patrulhando por ali. “Só tenho certeza de uma coisa: ele está livre, leve e solto, como se nada tivesse acontecido”, diz ela, que não terá seu nome divulgado por temer represálias.

“Tenho meus filhos, dá medo de uma covardia. Eu acreditava na polícia, tenho até parentes policiais, mas agora não confio. Quando vejo na rua, começa a me dar tremedeira”, afirma. Até então, sua maior preocupação era que o sobrinho sofresse um acidente de moto. “Nunca imaginei que ele ia tomar um tiro.”

O agente é do 41º Batalhão de Polícia Militar do Rio. Responsável pela Pavuna e outros bairros próximos como Irajá, Anchieta, Costa Barros e Acari, é um dos batalhões que mais mata no estado.

RANKING DAS MORTES

homicídio é o crime violento que mais vítima crianças e adolescentes no estado do Rio, bem como em todo o país. Logo em seguida vem a violência policial.

Rio de Janeiro ocupa o primeiro lugar no ranking de letalidade policial nessa faixa etária, mesmo com metade dos registros sem informação de idade. Foram 700 vítimas entre 2017 e o primeiro semestre deste ano.

Nem a pandemia foi capaz de frear a violência. Em 2020, o Rio foi o único estado que divulgou dados de janeiro a junho, período em que, mesmo com o isolamento social, 99 crianças e adolescentes foram mortos por policiais —27% na capital e 73% em outros municípios.

O estado responde por quase 40% das mortes de crianças e adolescentes decorrentes de intervenção policial no país e esse percentual mais que dobrou nos últimos dois anos.

O segundo da lista é São Paulo. No ano passado, foram 120 crianças e adolescentes mortos pela polícia —53 na capital e 67 em outros municípios. Esse número, ao contrário do Rio, vem caindo, mas em 28% dos registros não há a idade da vítima.

O terceiro no ranking do número absoluto de mortes é o Pará, com 102 vítimas —o estado não registra idade em 26% dos casos. Ele é seguido pelo Paraná, onde foram mortas 58 crianças e adolescentes por policiais em 2019, Ceará (39) e Minas Gerais (19).

O número é ainda maior, mas é difícil aferir o quanto porque os dados são precários. Até 2018, o país não tinha um sistema unificado para registros da criminalidade. Naquele ano, foi criado o Susp (Sistema Único de Segurança Pública) que, na prática, ainda não foi implementado.

Alguns estados não divulgam a idade das vítimas, enquanto outros preenchem e organizam mal as informações, dificultando um adequado diagnóstico do volume e circunstância das mortes e o perfil das vítimas. No Pará, por exemplo, 98% dos casos não têm informação sobre raça/cor. No Ceará, são 77%.

Excluindo essas imprecisões, é possível saber que 69% das vítimas da letalidade policial entre crianças e adolescentes no país são negras (pretas ou pardas) e que os casos se concentram na faixa etária que vai dos 15 aos 19 anos.

Segundo Sofia Reinach, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Goiás e Bahia, por exemplo, não entraram no levantamento porque insistem em enviar os dados por faixa etária e não a idade exata, ignorando os pedidos do órgão.

“Cada estado tem sua própria forma de registro nas delegacias e de compilação dos dados. Não existe um sistema nacional que junte isso”, afirma ela, que é mestre em Administração Pública e Governo pela FGV (Fundação Getulio Vargas).

Só o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum, faz essa compilação, solicitando os números a cada estado, via Lei de Acesso à Informação. “Mas recebe 27 bases de dados com características diferentes”, diz Reinach.

No caso da violência policial, a desorganização estatal se mistura à preocupação política com a divulgação dos números.

Escreve Reinach no Anuário deste ano: “não são apenas números, são pessoas e suas famílias que passam a vida tendo que conviver com essas marcas. Os jornais, que estampam rostos quando um caso chama mais atenção, poderiam dedicar páginas completas diariamente com fotos de vítimas. É uma rotina que foi normalizada no Brasil e vai muito além de alguns casos emblemáticos”.

Para ela, a violência policial escancara a vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes, a maioria pobre e negra. “É preocupante a interrupção de uma vida tão jovem. Que infância é essa? Que não pode nem brincar na rua? Os agentes do Estado, que deveriam proteger, matam”, diz. “É o retrato de uma geração sem perspectiva.”

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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