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Entre estado de exceção e estado de carnaval, que vença a liberdade

Entre estado de exceção e estado de carnaval, que vença a liberdade

Não podemos deixar que o momento catártico favoreça, durante todo o resto do ano, um comportamento apático ante a escravidão voluntária

As possíveis relações entre o Direito e a arte, no plano epistêmico, são há muito discutidas pela Teoria do Direito. Há diversos e relevantes autores que se dedicaram ao tema, inclusive apontando que o Direito pode ser visto mais como uma forma de manifestação artística retórica do que propriamente como uma ciência ou uma atividade puramente racional.

Sem me imiscuir nesse debate, vale observar que, de fato, quando se trata de interpretar o Direito material, o conteúdo das normas jurídicas, muitas vezes recorremos à linguagem e a critérios originalmente ligados à estética, como as ideias de razoabilidade e de sopesamento, em consequência da harmonia – este também um conceito próprio da estética.

Se o Direito se aproxima da arte em sua linguagem e instrumentos, tem também seu encontro com o Carnaval, essa festa popular que vocaliza a possibilidade de manifestação plena das liberdades e dos desejos humanos, e que se realiza por meio de expressões artísticas e estéticas, como a dança e a música.

Falar do Carnaval do ponto de vista do Direito não é algo necessariamente novo. Aliás, essa relação foi mais do que bem tratada na obra do grande jurista e professor argentino Luis Alberto Warat e de diversos de seus comentadores. Em A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos, Warat procura estabelecer os parâmetros do que seria uma epistemologia carnavalizada do Direito.

A partir da relação entre Direito e Literatura, ou de um olhar literário do Direito, o professor constrói, com muita criatividade, uma reflexão libertária do Direito e de seu uso, revolucionária à época. Um pensamento que se contrapõe à tradicional postura vetusta, sisuda, do jurista e à excessiva formalidade da teoria jurídica, que, perdida na busca de uma neutralidade inexistente no plano epistêmico, acaba se distanciando demasiadamente da realidade da vida a que o Direito deveria estar absolutamente atrelado. Atento a essa faceta, Warat encontrou uma forma libertária, carnavalizada, de compreender o Direito, constituído pelo desejo, pelo amor, por uma visão mais solidária e generosa de existência.

Colocada essa importante referência, quero tratar do fenômeno do Carnaval a partir de outra dimensão do Direito e da Teoria do Estado, a que tenho dedicado boa parte dos meus estudos, que é o conceito de estado de exceção.

Como se sabe, o Carnaval é uma festa catártica, e não uma comemoração ordinária. Trata-se de uma celebração radicalizada, de uma festividade dedicada à vivência plena dos prazeres, dos desejos e da extrema liberação corporal, em que há uma certa suspensão da ordem institucionalizada. A suspensão da normalidade e da normatividade nesses quatro dias de festa ocorre para dar vazão a uma liberdade mais intensa, a uma vivência extremada da liberdade corporal, da liberdade de agir, de manifestar afetos, pensamentos e emoções.

Vale ainda o registro de que essa vivência, em geral, é extremamente generosa e inclusiva, pois se busca agregar ou ao menos enxergar em todos a possibilidade de experimentação dessa liberdade amplificada. O Carnaval, além de ser uma festa suspensiva da ordem, libertária, é também um evento igualitário e da diversidade, pois não se dá de forma a eliminar as diferenças, mas, ao contrário, de incorporá-las.

Todos têm direito à festa e a dela participar da forma mais adequada a exercer os próprios desejos. Nesse sentido, o Carnaval suspende a ordem e a própria ideia de unidade, pois rompe com a normatividade e com a perspectiva de um comportamento padronizado. O Carnaval é, em suma, uma espécie de permissão para que cada um vivencie sua alegria de forma singular e plena.

“Não podemos deixar que este momento catártico favoreça, durante todo o resto do ano, um comportamento apático ante a escravidão voluntária”

 Por mais contraditório que pareça – e é – é justamente o fato de o Carnaval suspender a normalidade que o aproxima da ideia de exceção. O estado de exceção ou as medidas autoritárias de exceção são também formas de suspensão da normalidade e da normatividade. Só que há entre esses dois contextos – o do Carnaval e o do autoritarismo do Estado – uma distinção absoluta, que os coloca em lados absolutamente opostos.

Isso porque, ao passo que o Carnaval interrompe a ordem para promover a vivência exacerbada da liberdade, as medidas de exceção o fazem com objetivo completamente oposto. Suspendem a normalidade para se obter uma maior restrição da liberdade e, muitas vezes, a supressão total desse bem absoluto e até mesmo da própria vida humana.

Artigo publicado originalmente na Carta Capital.

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