Por Thaiza Pauluze
Titular da pasta da Justiça na presidência de FHC, ele critica o atual ocupante do posto
O advogado criminalista José Carlos Dias, ministro da Justiça de FHC em 1999 e 2000, discorda que as entidades de direitos humanos, como a Comissão Arns, que preside, só escrevam notas de repúdio frente a casos de graves violações no país.
“É o que nós podemos fazer dentro do limite da nossa capacidade. Estamos incomodando o governo [de Jair Bolsonaro], a verdade é essa”, disse ele, que chama os ocupantes do Palácio do Planalto de “organização familiar criminosa”.
No início da pandemia, a Comissão Arns se juntou à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), à ABI (Associação Brasileira de Imprensa), à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), à ABC (Academia Brasileira de Ciências) e à SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) para formar o que chamaram de Grupo dos Seis.
As entidades escreveram o Pacto pela Vida e pelo Brasil, com vários pleitos dirigidos ao governo federal, ao Congresso e ao STF (Supremo Tribunal Federal). Segundo Dias, só houve interloculação com a Corte.
Agora, o grupo organiza o evento online que marca os 72 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos nesta quinta-feira (10). O seminário terá três debates, entre 9h e 12h: um sobre defesa da democracia, outro sobre combate à desigualdade e ao racismo e o terceiro sobre preservação da vida.
Entre os palestrantes estão o advogado constitucionalista Fabio Konder Comparato, a ex-vice-procuradora-geral da República Debora Duprat, o cientista político Luiz Eduardo Soares, o antropólogo Kabengele Munanga, a médica e ativista do movimento negro Jurema Werneck e o líder indígena Ailton Krenak.
Dias, que já presidiu a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e foi secretário de Justiça do estado (1983- 86), acha que Bolsonaro despreza a crise do coronavírus e o país está enfermo. “Vivendo uma pandemia e um pandemônio”, diz ele.
Dias conversou com a Folha por telefone. Ele está quarentenado desde março em sua casa, em São Paulo.
Qual a importância de falar do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos neste ano? Nós estamos vivendo uma situação terrível, com violação de direitos humanos de uma forma escancarada. Antes da pandemia, tivemos uma reunião na Catedral do Rio e resolvemos nos unir. Foi assim que a Comissão Arns junto com OAB, ABI, CNBB, SBPC, ABC criamos o Grupo dos Seis, para fazer uma manifestação forte. Redigimos um documento, o Pacto pela Vida e pelo Brasil, onde afirmamos a importância de lutar contra todos os atos de violência que são praticados pelo governo [Jair] Bolsonaro, como as manifestações violentas na reunião ministerial [que teve vídeo divulgado] e também nas ruas em Brasília, contra o Supremo Tribunal Federal, a favor do AI-5, que partiram de apoiadores do governo e dos filhos dele. É uma organização familiar criminosa, que está pondo a democracia brasileira em muito risco.
Algo do Pacto pela Vida e pelo Brasil foi implementado? Um dos pedidos do documento era a ampliação do Bolsa Família e de uma Renda Básica Emergencial. Pesquisas mostraram que o auxílio emergencial fez diminuir a rejeição de Bolsonaro, que o senhor critica… Era fundamental que tivesse esse auxílio emergencial, mas foi o Congresso, não o presidente, que estabeleceu os R$ 600 para suprir as deficiências, porque a situação estava desesperadora. Claro que o Bolsonaro lucrou politicamente, porque ele fez disso uma propaganda. Mas o governo [federal] não está enfrentando a situação, está desprezando. Ele [Bolsonaro] vai a eventos pessoalmente sem nenhuma preocupação com distanciamento social, máscara. Os povos indígenas estão sendo contaminados. O meio ambiente não é objeto de preocupação desse governo. O papel que estamos desempenhando como sociedade civil é dar um basta nessa situação de pandemia e de pandemônio.
Quando há casos de desrespeito aos direitos humanos, entidades como a Comissão Arns divulgam notas de repúdio. Críticos dizem que elas são insuficientes para fazer frente às violações. As entidades têm feito pouco? Temos nos manifestado em várias oportunidades. É o que nós podemos fazer dentro do limite da nossa capacidade. Somos uma entidade da sociedade civil, que não está aceitando essa situação. É um fato inédito a união desse Grupo dos Seis, formando um coro dos múltiplos e lutando para que a pandemia seja enfrentada de maneira séria, correta. O Brasil está enfermo, não só pela pandemia mas pela maneira desastrada com que o governo tem conduzido [a crise de saúde].
O que mais a sociedade civil poderia fazer? Estamos incomodando o governo, a verdade é essa. Nós não temos atuação partidária, mas com esse pacto, enfrentamos de maneira clara e corajosa, apesar dos riscos que cada um individualmente corre, porque não tratamos com um governo democrático, mas com um que dá passos acelerados rumo ao autoritarismo. Nós nos dirigimos ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal e queremos diálogo.
Houve interlocução com o STF ou com o Congresso? Tivemos uma reunião com o Dias Toffoli [ex-presidente da Corte] e entregamos o pacto. Pedimos uma audiência com o presidente da Câmara, que infelizmente ainda não se realizou. Estamos abertos à interlocução. Não fazemos oposição política, mas afirmação de princípios.
Casos recentes como de George Floyd e de Beto Freitas geraram protestos e houve algumas mudanças. Mas também vimos assassinatos parecidos se repetirem. O sr. acha que estamos caminhando a passos lentos ou andando para trás quando se trata de racismo? O racismo no Brasil é calamitoso. Nós não estamos caminhando como deveríamos caminhar. Essa é uma das nossas bandeiras. O que aconteceu no Carrefour, o caso das meninas no Rio de Janeiro [primas de 4 e 7 anos foram baleadas na porta de casa em Duque de Caxias] são episódios de desespeito aos negros, como dentro dos presídios e a atuação da polícia. Essa é a preocupação máxima da Comissão Arns nesse momento.
Vimos o STF interferir na segurança pública do Rio, determinando limites para as operações policiais durante a pandemia. O sr. acha que o Supremo deve intervir na política de segurança e nas corporações estaduais? Há sim questões que podem ser levadas ao Supremo e decididas pelos ministros. É o órgão máximo do controle constitucional. Essas violências que são praticadas contra os negros violentam o princípio básico da Constitução, de que todos são iguais perante à lei. Pode e deve intervir. Acho que o Supremo tem dado passos importantes nesse sentido.
Também vimos o presidente ir contra a ciência, no caso do cloroquina e do não-uso de máscara, por exemplo. O sr. acha que ir contra a ciência também fere os direitos humanos? Por quê? Fere sim. Temos que respeitar a ciência. É a partir daí que pode haver o enfrentamento da pandemia. A Organização Mundial da Saúde e a Anvisa [Agência de Vigilância Sanitária] têm a responsabilidade de marcar o caminho que o governo deve seguir para enfrentar a pandemia. O descaso é alarmante. O governo é indiscutivelmente responsável pelo alto número de mortos, por não estar dando a atenção devida.
O presidente da CNBB, que faz parte da Comissão Arns, dom Walmor Oliveira de Azevedo, disse na época do aborto realizado na menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio no ES, que o procedimento era um crime hediondo e lamentável. Ele inclusive vai participar da mesa sobre direitos humanos e preservação da vida. O senhor concorda com o arcebispo? Acha que cabe uma fala dessa dentro da Comissão Arns? Eu tenho a minha posição, eu defendo o aborto legal. Acho que deveríamos até ampliar a possibilidade do aborto em outras situações que não aquelas previstas na lei. Mas tenho que respeitar a posição que foi apresentada pelo presidente da CNBB, em razão das suas posições religiosas. É óbvio que temos nossas divergências, mas naquilo que é essencial, que é a defesa dos direitos humanos, nós estamos juntos. Tenho o maior respeito pelo dom Walmor, acho que ele está conduzindo bem a presidência da CNBB.
Mas o senhor não acha que defender a continuidade da uma gravidez fruto de uma violência sexual e que traria mais riscos para a menina do que a interrupção da gestação não é ir contra os direitos humanos? Não é contraditório? Na minha opinião, eu acho que sim. Não posso responder pela opinião de todos. Tanto a Comissão Arns e as outras entidades, claro que cada uma tem as suas posições e as divergências eventuais, mas estamos juntos no que é essencial, a defesa dos direitos humanos.
No ano passado, o sr. classificou como uma calamidade a gestão do então ministro da Justiça, Sergio Moro, que a seu ver não tinha pulso e era desmoralizado pelo presidente. Ainda acha isso depois da forma como ele saiu do governo? Acho que assim como faço críticas fortes ao Sergio Moro como juiz, continuei fazendo como ministro e a maneira como ele saiu, chocando, a meu ver os dois se saíram mal. Ele fez afirmação de que o presidente estava tentando interferir na Polícia Federal, mas ele como ministro não deu nenhum passo para evitar que isso acontecesse antes. O fato de ele ter saído não faz com que eu passe a ter maior respeito por ele.
E como avalia a gestão do atual ministro da Justiça, André Mendonça? Ele ainda não mostrou o que está fazendo. Não tenho como caracterizar. Apenas aquele que aceita ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro não é uma pessoa que merece meu respeito.
Também ano passado, o sr disse que queria tirar o pé do acelerador, mas Bolsonaro o fez “ressuscitar em toda a minha brabeza.” Continua assim? Graças a Deus continuo com o pé no acelerador, não com o pé no freio. Apesar de estar num momento em que deveria estar aposentado, com 81 anos, mas eu não sossego enquanto não conseguir fazer alguma coisa por esse país. Por isso estou na Comissão Arns.
Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.
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