Por Fernanda Tórtima
País perdeu a oportunidade de fazer, junto à reforma tributária, uma revisão das correlatas normas penais e sua harmonização com as normas administrativas
O quadro fiscal no Brasil preocupa, e boa parte das soluções que vem sendo apontadas passam mais pelo aumento da receita tributária e menos por diminuição de despesas públicas e racionalização da legislação vigente e em gestação.
Em recente entrevista para o “Brazil Journal”, o empresário Rubens Ometto chamou atenção para mecanismos pelos quais o governo e diversos de seus órgãos vêm trabalhando furiosamente para aumentar a arrecadação tributária e poder gastar mais, o que desestimula o empresário, como ele próprio, a investir no país, gerando renda e empregos. Apontou ele ainda para a necessidade de se aumentar a arrecadação por meio de medidas contra o empresário que atua na ilegalidade e contra o sonegador, notadamente o contumaz.
Para além do aprimoramento de instrumentos de controle e fiscalização, essas medidas, não se pode negar, devem passar necessariamente pelo aperfeiçoamento do sistema penal tributário brasileiro, fartamente provido de invencionices que não encontram paralelo em nenhum outro país.
Uma dessas jabuticabas é a permissão legislativa, prevista no artigo 69 da Lei 11.941/2009, para o reconhecimento da extinção da punibilidade do agente do crime de sonegação fiscal, incondicionalmente e a qualquer tempo, diante do pagamento dos respectivos tributos devidos. A constitucionalidade da norma em questão foi reconhecida no ano passado no julgamento da ADI 4273.
Embora de fato não pareça ser possível apontar vício de inconstitucionalidade na citada norma, o fato é que essa solução legislativa não é a que melhor zela pela proteção do bem jurídico tutelado e nem mesmo é a que mais apresenta garantias para o contribuinte face ao poder persecutório estatal. Talvez exatamente por isso não se conheça norma semelhante no direito alienígena, ao menos não nos países que integram a OCDE.
Com efeito, nenhuma outra legislação trata da possibilidade de regularização fiscal impeditiva da persecução penal sem questionamentos dogmáticos e principiológicos mais aprofundados. Já aqui o direito é assegurado ao sonegador, independentemente de considerações sobre, por exemplo, a contumácia da conduta, os valores sonegados ou a gravidade da fraude cometida.
Embora se possa imaginar que o efeito imediato dessa solução legislativa seja o aumento da arrecadação, já que o contribuinte tenderia a pagar seus tributos para evitar consequências penais, a longo prazo o efeito deverá ser o inverso. Quando se opta por permitir ilimitadamente a extinção da punibilidade a partir do pagamento do tributo, há um efeito diferido de deslegitimação do direito penal e, assim, de ausência de reforço das expectativas normativas e de diminuição do efeito intimidatório da pena. Não será difícil imaginar que, mediatamente, o contribuinte, sabedor de que, em caso de persecução penal, a quitação de seus débitos poderá afastar a ameaça penal, passe a sonegar como método, empreendendo verdadeira arbitragem financeira com base nos valores a serem pagos caso venha a ser investigado ou processado criminalmente — muitas vezes reduzidos em decorrência de soluções consensuais, como a transação tributária — e os rendimentos ou outros benefícios financeiros obtidos com a disponibilidade dos valores mantidos em seu poder até o momento da eventual quitação do débito
Embora uma análise empírica da eficácia do direito penal seja tarefa de difícil realização, não se pode negar ao direito penal a função que lhe é própria, que é a de evitar crimes, ao menos em tese. Não cabe, portanto, aos órgãos responsáveis pela persecução penal travestirem-se de braço do Estado arrecadador, até mesmo porque, como visto, nem mesmo cumprirão essa função de forma adequada.
Sob o prisma da garantia do contribuinte face ao sistema penal, se por um lado, a possibilidade de pagar tributo e ter a punibilidade extinta parece vantajosa, não se pode esquecer que haverá uma tendência maior à movimentação da máquina repressiva penal, muitas vezes de forma indevida, com o objetivo de coagi-lo a pagar os tributos devidos. Inclusive dirigindo-se a persecução penal para quem tem o poder de realizar o pagamento, mas não necessariamente participou da tomada de decisões que culminou na supressão/redução de tributos, o que é muito comum em se tratando de estruturas empresariais.
Nosso sistema penal tributário padece ainda de diversas outras graves anomalias. Temos uma miríade de leis penais e normas administrativas que dificilmente se deixam harmonizar entre si, menos ainda com determinados princípios e garantias, muitos de matriz constitucional, todos essenciais a um direito penal democrático.
De fato, independentemente dos erros e acertos da reforma tributária, fato é que se perdeu uma boa oportunidade de se fazer uma profunda e necessária revisão das correlatas normas penais, e sua harmonização com as normas administrativas, sistematizando-se, assim, os processos de fiscalização dos contribuintes e de sancionamento de ilícitos tributários.
Artigo publicado originalmente no O Globo.
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