Por Reinaldo Azevedo
Procurador decidiu me processar por danos morais e escolheu caminho que considero um truque
O “fumus boni juris” —as evidências de que uma causa é justa— está se transformando, no Brasil, numa fumaça tóxica, em que se misturam voluntarismo, direito criativo e, muitas vezes, corporativismo e compadrio. Decisões heterodoxas podem colher, por exemplo, um jornalista ou um governador. Querem ver?
O procurador da República Deltan Dallagnol, ex-coordenador da Lava Jato em Curitiba, decidiu me processar por danos morais. Escolheu um caminho que constitui o que considero um truque, já chego lá. Fui condenado a lhe pagar R$ 35 mil.
Até aí, dirá o leitor, fazer o quê? Nessas coisas, há sempre vencedores e vencidos. O importante é que se garanta o devido processo legal. Estou inteiramente de acordo com a constatação e com o postulado. Ocorre que há uma particularidade no caso.
Sibele Lustosa, a juíza de direito que me condenou, é mulher do procurador da República Daniel Holzmann Coimbra, que trabalha com Dallagnol na Procuradoria da República no Paraná. São parceiros e amigos. Parece-me certo —razão por que submeto o caso ao escrutínio de leitores, juízes do Paraná, do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça— que Sibele deveria ter-se dado por suspeita para julgar o caso.
Numa democracia, têm de valer as regras do jogo. Dispõe o inciso I do artigo 145 do Código de Processo Civil: “Há suspeição do juiz [quando] amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados”. Obviamente, não sou inimigo da juíza Sibele, mas ela é mulher do amigo da outra parte.
Há particularidades no processo. Dallagnol apelou ao Sexto Juizado Especial Civil de Curitiba, que é o antigo Juizado de Pequenas Causas. Obviamente, estamos no terreno da liberdade de expressão e da eventual transgressão de seus limites. Um direito constitucional não pode, por definição, ser considerado uma “pequena causa”.
Ocorre que o caminho escolhido pelo procurador encontrou o juizado que lhe pareceu mais adequado, não é mesmo? Mais: por ser uma suposta “pequena causa”, a chance de apelar da sentença se resume a uma Câmara Recursal apenas, que faz as vezes do Tribunal de Justiça, obstando-se o caminho para o STJ.
Se eu for malsucedido nessa esfera, resta recurso extraordinário ao STF, situação, então, em que ou a corte constitucional do país avalia um caso oriundo do antigo Juizado de Pequenas Causas, ou o peticionário —nesse caso, este escriba— é condenado a cumprir a decisão tomada pela mulher do amigo da parte vencedora.
Não descarto que a juíza Sibele possa estar convencida de que sou culpado e de que o parceiro e amigo de seu marido tem razão na sua demanda. Mas o Código de Processo Civil protege querelantes, querelados e juízes dessa situação vexatória. Ah, sim: quem redigiu uma sentença que diz respeito a um fundamento constitucional foi uma juíza leiga —advogada que presta serviço à Justiça para casos de menor complexidade. Mas a decisão tem de ser referendada por juiz de direito e foi —no caso, pela doutora Sibele.
As peripécias de Dallagnol —do showmício do PowerPoint aos eventos impressionantes no Conselho Nacional do Ministério Público, passando pelas coisas assombrosas reveladas pela Vaza Jato— fazem dele um homem célebre e podem até lhe render vaga no Senado. Está fora da Lava Jato, o que considero, em si, um bem para o devido processo legal.
Importam-me menos, no entanto, disposições subjetivas. Luto em favor de limites objetivos. A Lava Jato, como a conhecemos, esfacelou-se, mas seus métodos sobrevivem, como se vê na cruzada ilegalista da PGR contra Wilson Witzel, coonestada, infelizmente, pelo STJ. Nada tenho de bom a dizer sobre o governador do Rio. Seu afastamento, nas condições dadas, é uma aberração.
Augusto Aras, procurador-geral da República, acumulou, é certo, arsenal convincente o bastante para fazer a tropa da Lava Jato bater em retirada. E em silêncio. Por quê? Cabe à imprensa descobrir. A luta pelo Estado de Direito assume, para mim, nova perspectiva. Importa pôr fim às ilegalidades que a força-tarefa consagrou para que a fumaça tóxica não sirva a novos senhores.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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