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Habeas Corpus e pizza delivery

Habeas Corpus e pizza delivery

Nabor Bulhões, advogado de renome nacional que dispensa apresentações, impetrou um impecável HC em favor do governador do Amazonas para evitar sua ida à CPI. O jornalista do Estadão José Roberto Guzzo praguejou contra a concessão da liminar pela ministra Rosa Weber; disse que “a corrupção está oficialmente autorizada no Brasil de hoje”, pois o que está valendo “é um liberou geral”, já que obter um Habeas Corpus seria algo tão tranquilo como pedir uma pizza no delivery (“Delivery”, Estadão, edição de 13 de junho de 2021, p. A8).

A verdade é que longe da maledicência lançada por ignorância ou má-fé, o STF tem antiga e consistente jurisprudência protegendo o investigado do comparecimento à CPI exatamente para se impedir a autoincriminação, uma vez que em relação ao citado governador há, comprovadamente, sobre os mesmos fatos, investigação criminal já instaurada. Ademais, nas ações de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) 395 e 444 o STF havia decidido que não se pode conduzir coercitivamente o investigado para interrogatório, pois isso viola o seu direito ao silêncio. Desse modo, ao conceder a medida liminar para desobrigar o governador do comparecimento à CPI, a Ministra Rosa Weber advertiu:

(…) os investigados por Comissões Parlamentares de Inquérito, assim como ocorre na seara judicial, não podem ser obrigados a comparecer ao ato de inquirição, como decorrência do direito à não autoincriminação (HC 171.628/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJe 24.5.2019; HC 175.121-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, DJe 04.9.2019, v.g.).”

Não se trata, portanto, de saber por que uns podem ser massacrados em público e o governador não pode responder sequer a uma “perguntinha”, como sugeriu Guzzo. Nem “uns” podem ser massacrados, pois, além de se extrapolar o que é permitido a um parlamentar, se viola a dignidade humana, e nem o “outro” pode ser compelido a comparecer perante uma CPI que investiga fatos pelos quais ele está sendo investigado no âmbito criminal.

O respeito à legalidade impõe limites à atividade cognitiva estatal. A verdade e as formas jurídicas representam um antigo centro de tensão no Estado democrático de direito. Não se pode torturar e nem se valer de provas ilícitas para se descobrir a verdade. No âmbito do STJ, no rumoroso caso da Castelo de Areia, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, que também é professora de processo penal na USP, colocou a questão de saber qual o limite do direito da coletividade à persecução. E responde:

“Se de um lado a pessoa deve ter preservada a sua individualidade, de outro, o Poder Público tem a prerrogativa de fazer prevalecer a ordem, afastando e coibindo, dentro do plano da legalidade, eventuais desestímulos à paz social. E tudo se interpondo no curso da previsão constitucional do devido processo legal (HC n. 137.349, DJe 3/5/2011).”

Jogar para a torcida com o vale tudo de uma investigação parlamentar e colocar o STF como cúmplice da corrupção é um dos caminhos para o autoritarismo. Não só se desacredita o STF por proteger direitos e garantias fundamentais, mas, num só golpe, avança-se naquilo que diferencia a civilização da barbárie, que é exatamente a real observância desses direitos.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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