O juiz André Nicolitt, da comarca de São Gonçalo, estava de plantão quando viu uma decisão sua ganhar repercussão nacional: ele concedeu habeas corpus ao músico Luiz Carlos Justino, de 23 anos, preso sob a acusação de assalto à mão armada. O crime, entretanto, aconteceu enquanto o jovem trabalhava tocando em uma padaria.
Na decisão, Nicolitt, que está há 19 anos no Judiciário, questionou: “Por que um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria ‘desconfiança’ para constar em um álbum [usado pela polícia para reconhecer suspeitos]?”.
Sobre o texto que ganhou grande repercussão nas redes sociais, disse ao UOL: “Eu olho com muito zelo para cada sujeito preso ou a ser preso, não tenho padrões decisórios genéricos”. “Eu vou olhar para cada processo como uma das coisas mais importantes a serem feitas, porque colocar alguém no cárcere é muito grave. Quando este processo [de Justino] veio, olhei com toda a atenção que merece.”
Ter mais negros ocupando lugares de destaque influencia o imaginário social, que associa a cor escura ao crime graças ao reforço de estereótipos, avalia. Juízes pretos, como ele, são menos de 2% do total de magistrados do país, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça.
O olhar dos profissionais passa a ser diferenciado: o juiz negro que vai julgar o negro não o vê como outro, alguém que habita um não lugar. Há uma relação de reconhecimento.”
Professor de Direito Penal na Universidade Federal Fluminense, escritor e, nas horas vagas, músico, Nicolitt conta que, na universidade, tenta passar aos alunos o mesmo cuidado na prática profissional. Para isso, debate com seus estudantes de graduação o conto “Espelho”, de Machado de Assis. Nele, um homem nota que só existe por completo quando alguém (ou algo) o lembra da posição de poder que ocupa.
Não só para os profissionais em formação, diz, o conto é também fundamental para o exercício de todo magistrado: nenhum cargo, por mais poder que confira, deveria destruir o que há de humano em seu ocupante. Ainda mais no caso de magistrados. “O processo é uma coisa com pessoas dentro”, ressalta.
Ocupante de um cargo que garante estabilidade financeira, Nicolitt afirma que não há ascensão econômica que poupe qualquer negro do racismo. Se no gabinete está protegido de eventuais ataques, ao sair às ruas é apenas um homem negro: “Eu não consigo ser visto como juiz o tempo todo.”
Para ilustrar a situação, conta que, certa vez, caminhava na orla com o genro, outro homem negro. Quando viu uma dupla de policiais atravessar a rua e caminhar em sua direção, sentiu um forte receio. Ao ver os agentes passarem por eles, os dois se entreolharam: o medo era comum.
Será que homens brancos têm o mesmo medo quando andam na praia? Para mim, isso não muda nem quando você é juiz. Respeito não deveria depender da sua posição intelectual, social, política e de poder. Deveria ser inerente a qualquer ser humano.”
Primeiro da família
A reverência pela magistratura quase afastou Nicolitt do cargo que ocupa hoje. Nos anos 2000, recém-formado em Direito pela mesma UFF, fez o concurso para juiz sem muita esperança.
Naquela época, acreditava que poderia ser um bom promotor ou defensor público, com atuações mais ágeis e diferentes do juiz, “que fica ali, distante”. Para sua surpresa, foi aprovado na primeira etapa. Superou as demais até a prova oral.
Todas as outras fases são anônimas, não sabem se o candidato é mulher, preto. Mas, na prova oral, sua cara está lá. Isso ficava na minha cabeça: ‘E se o examinador for racista e achar que não tem lugar para preto no concurso?’ Além da preocupação para me preparar, ainda tinha medo de encontrar um racista que quisesse me eliminar de concurso.”
A escolha pelo Direito foi influenciada pela situação de quase miséria, como ele mesmo define a sua infância e juventude. Nascido em Itaperuna, no interior do Rio de Janeiro, Nicolitt é filho de uma família sem estudos. Foi o primeiro a terminar o ensino fundamental e chegou ao doutorado, cursado na Universidade Católica Portuguesa, no país europeu.
Amante das artes e da música, Nicolitt sempre tocou violão. Até a juventude compunha. Na escola, gostava de artes, literatura e história, e pensava que poderia fazer carreira como professor, músico, ator, diretor de teatro ou escritor.
“Em uma família miserável, a opção de ser professor de história ou de artes era algo que contrariava a percepção que eu tinha da necessidade de ajudar minha família, já que eu estava ali, em termos de instrução, com potencial maior para isso. Na época, o mercado de Direito era aquecido, com possibilidades de crescimento profissional que se aproximavam das minhas competências: a escrita, a leitura”, explica.
Após a decisão racional, começou a graduação em 1993. Na UFF, passou do ensino à pesquisa e depois para a extensão. As políticas públicas, como bandejão e bolsa de monitoria, garantiram que ele passasse quase todo o curso apenas entre livros. Quase todo o tempo: Nicolitt fazia pequenas apresentações tocando em bares próximos à UFF.
No fim da faculdade, veio o primeiro trabalho em um banco. A demissão, fruto de uma crise de época, o fez se dedicar aos concursos. No mesmo ano, sua primeira filha nasceu. “Se não fosse a necessidade de estabilidade, após a demissão, talvez eu não tivesse me dedicado tanto para ter o que tenho hoje”, avalia.
Sobre a presença de negros em lugares de destaque, cita os versos de Djonga, um dos principais nomes recentes do rap nacional. Para ele, o gênero mantém vivo o legado de artistas que cantavam crítica e resistência:
Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho / Corpos negros no trono, me sinto olhando o espelho.”
Djonga, em “Falcão”, faixa do álbum Ladrão
Para o magistrado, o espelho de Djonga é tão simbólico quanto o de Machado de Assis.
Entrevista publicada no UOL.
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