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Julgamento digno

Julgamento digno

Riscos da transmissão de julgamentos pela TV. Leia o artigo do advogado criminalista Kakay

“A verdade é inconvertível, a malícia pode atacá-la, a ignorância pode zombar dela, mas no fim; lá está ela.”

Winston Churchill

Há quase 20 anos, a TV Justiça cuida de transmitir os julgamentos no Poder Judiciário, especialmente os ocorridos no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Desde o primeiro momento, fui um crítico ferrenho da transmissão dos julgamentos que digam respeito aos processos criminais. Entendo a intenção de proporcionar transparência a um Poder tão fechado e ensimesmado. Também aplaudo a iniciativa de fazer com que o cidadão possa acompanhar algumas das grandes discussões que interessam diretamente à sociedade. Por isso, nós temos a TV Senado e a TV Câmara. Mas há uma reflexão que entendo necessária.

Os debates que se dão no Congresso Nacional devem e podem ser completamente abertos à população. Aquela é a casa do povo. Os congressistas devem e têm mesmo, como imperativo, que ouvir a voz das pessoas. Nada mais correto que o cidadão possa acompanhar as discussões ocorridas dentro do Congresso até para poder fiscalizar se aquele em quem votou está cumprindo as promessas de campanha. Ao contrário do que ocorre no Judiciário. O Juiz tem que ouvir a Constituição Federal. O Ministro do Supremo é um Juiz e, como tal, deve obediência à Constituição. Por isso, falar que o Judiciário deve ouvir a voz do povo é um completo desvirtuamento, especialmente em matéria criminal.

Entendo que, se a Suprema Corte está decidindo questões como o casamento homoafetivo, a descriminalização de drogas, as pesquisas com células-tronco e tantas outras deliberações que impactam a vida da sociedade, a transmissão representa um avanço, pois permite uma transparência que oxigena a democracia. Nessas discussões, em regra, o cidadão já tem um opinião sem precisar conhecer a prova produzida nos autos. Cada um forma sua convicção pelos mais diversos motivos, sejam de índole religiosa, comportamental, de vida, enfim. O acompanhamento dos votos dos Ministros pode até reforçar ou mesmo mudar as convicções, mas entendo que a discussão pública desses grandes temas faz parte de um processo de amadurecimento democrático. Totalmente diferente do que ocorre no processo penal.

No processo-crime, o julgamento deve se dar em completa sintonia e respeito à prova produzida nos autos. Um julgamento técnico que abarca comprovação de matéria fática. Ou seja, para que ocorra uma condenação, o Estado acusador tem que provar o que diz. É necessário que as provas acarreadas aos autos pelo Ministério Público sejam abundantes, contundentes, irrefutáveis para permitir uma condenação. Embora o princípio constitucional da ampla defesa permita uma retórica defensiva, isso não ocorre em relação à acusação, que deve se impor rigor absoluto na análise da prova produzida. Inclusive, em um processo democrático, o Ministério Público tem o dever de pleitear  pela absolvição se não provar a acusação. E deve ser um cuidadoso defensor do devido processo legal, pugnando pela retirada de provas produzidas de maneira inconstitucional ou ilegal, bem como tendo a obrigação, legal e ética, de juntar aos autos qualquer prova ou indício de inocência. E ter a natural missão de pedir a absolvição em caso de dúvida.

A transmissão dos processos penais fomentou a espetacularização e politizou os julgamentos com graves consequências aos direitos individuais. Impossível exigir uma análise puramente técnica quando se estabelece um clima de decisão de final de campeonato. O país do futebol virou o país dos julgamentos midiáticos. A paixão, os interesses pessoais, a orientação política,  ou seja, vários ingredientes entraram em campo e a Justiça foi deixada no escanteio.

Somos todos humanos, demasiadamente humanos. O Ministro do Supremo também, e é natural que seja influenciado pelo ambiente em que vive. Para dar o norte é que existe a Constituição. Como evitar o excesso de vaidade com a publicidade opressiva? Vaidade de todos, não só dos Ministros. Colocam uma capa preta nas costas do advogado, transmitem uma sustentação oral feita da Tribuna do Plenário e não querem que a vaidade esteja dividindo o espaço na Tribuna? O que falar dos Ministros que ficam horas a fio no ar decidindo processos que vão impactar a vida do país? A espetacularização do processo penal é um desastre para o réu. Um desastre para a Justiça. O excesso de exposição é uma condenação acessória, sem previsão legal. Sem falar que essa superexposição serve também para pressionar o julgador, para colocá-lo, humanamente, a favor ou contrário à tal opinião pública. E danem-se as provas dos autos.

Fui advogado do Duda Mendonça e da Zilmar Fernandes no famoso processo do Mensalão. Durante meses, o julgamento paralisou o país. Transmitido ao vivo do Plenário do Supremo Tribunal, o julgamento era reprisado todas as noites e nos finais de semana. Era como se fosse uma série com direito à transmissão ao vivo e à reprise. Os Ministros do Supremo passaram a ser mais conhecidos do que os jogadores da seleção brasileira de futebol. Com direito à torcida apaixonada. O Ministro que tinha a coragem de enfrentar a decisão midiática, já pré-produzida e divulgada, era vaiado na rua. Aquele que estava representando a vontade popular era tratado como herói. Parafraseando Brecht: “miserável o Judiciário que precisa de heróis”.

Duda e Zilmar foram absolvidos. No entanto, no imaginário popular, eles são mensaleiros. Eles foram condenados pelo tribunal popular. A superexposição midiática produziu uma condenação contra a qual não cabe recurso. Duda teve que levar sua genialidade criativa para fora do país, indo trabalhar na Polônia e em Portugal. É em respeito à presunção de inocência, à ampla defesa, à paridade de armas e à dignidade da pessoa humana que eu defendo a não transmissão do processo penal. É bom ler Mia Couto para entender a dimensão do processo penal:

Versos do prisioneiro 3

 

“Não me quero fugitivo.

Fugidio me basta.

Dentro do pássaro há uma grade

um eterno confinar de gaiola.

Da liberdade das aves,

outros poetas falaram.

Eu falo da tristeza do voo:

a asa é maior do que o inteiro firmamento.

Quando abrirem as portas

eu serei, enfim,

o meu único carcereiro.”

 

Versos do prisioneiro – A sentença

 

“Você

tem que aprender

a respeitar a vida humana,

disse o Juiz.

 

Parecia justo.

 

Mas o juiz

não sabia, que, para muitos

a vida não é humana.

O prisioneiro retorquiu:

há muito me demiti de ser pessoa.

E proferiu, por fim:

um dia,

a nossa vida será, enfim,

viva e nossa.”

Artigo publicado originalmente no O Tempo.

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