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‘Mesmo movimento de delações vai ocorrer com acordos de leniência’

‘Mesmo movimento de delações vai ocorrer com acordos de leniência’

O advogado Igor Tamasauskas participou de dois dos principais acordos de leniência firmados no país. Há cinco anos, quando a “lava jato” ainda pulsava, negociou para que as agências de publicidade Mullen Lowe e FCB pagassem mais de R$ 50 milhões por terem confessado o repasse de propina para manter seus contratos com o governo federal entre 2011 e 2014. Foi a primeira vez em que Ministério Público Federal, AGU (Advocacia-Geral da União) e CGU (Controladoria-Geral da União) sentaram à mesa para celebrar negociação do tipo.

Um ano antes, em 2017, Tamasauskas atuou no acordo da JBS, que, naquele momento, era alvo de investidas do Ministério Público Federal no bojo de investigações que eles batizaram com os nomes fantasias de operações “greenfield”, “sépsis” e “cui bono”.

Agora, na ressaca das revelações de ilegalidades e em contexto de disputa pelo espólio da “lava jato” — que inclui a revelação de trocas de mensagens entre procuradores que indicavam condutas ilegais e antiéticas na elaboração deste acordo —, a empresa tenta diminuir o valor da multa a ser paga, que ultrapassa os R$ 10 bilhões. Há uma rusga interna dentro do Ministério Público Federal sobre os valores; alguns entendem que houve erro na base de cálculo, enquanto outros procuradores defendem os valores iniciais.

Sobre o acordo, Tamasauskas afirma que, à época, a demora nas negociações poderia afetar a empresa permanentemente do ponto de vista de liquidez. “Houve um descasamento entre os acordos de colaboração e de leniência, cujo efeito reputacional — e também econômico — seria catastrófico. E agora faz sentido que seja revisitado, porque está fora da realidade aquele valor”, diz Tamasauskas à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Para o advogado, a mesma movimentação que ocorreu em torno das delações premiadas, cujo pente fino da Justiça acabou por anular uma série de ações e condenações, deve também acontecer com os acordos de leniência firmados por Curitiba e suas sucursais.

“A gente viu alguns casos, do ponto de vista das delações, em que houve uma má aplicação por parte das autoridades, que foi reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal e parece que o mesmo movimento vai ocorrer do ponto de vista dos acordos de leniência.”

Depois destes acordos, diz o advogado, a ideia de “infalibilidade” da “lava jato” começou a ruir, e agora há um processo de “depuração”. Há ainda, segundo Tamasauskas, necessidade de unificar a atuação dos órgãos frente a casos de corrupção que envolvem empresas, rechaçando certa competição institucional que acabou ganhando corpo após a edição da Lei Anticorrupção.

Na entrevista abaixo, o advogado fala sobre a relevância da cadeia de custódia das provas no contexto dos acordos de leniência, em especial o que envolve a Odebrecht, a nova lei de improbidade e a necessidade de se adotar um manual unificado para calcular as multas às empresas e empresários que cometem crimes. “O que está faltando é um aprofundamento ainda maior para isso, para ter uma receita, ainda que indicativa, porque você nunca vai esgotar o cardápio da corrupção.”

Leia a entrevista:

ConJur — Levando em consideração o momento posterior à “lava jato”, e também este contexto em que os acordos das grandes empresas brasileiras no âmbito dessa operação têm sido contestados, o que se discute hoje em relação aos acordos de leniência?

Igor Tamasauskas — A Lei Anticorrupção foi editada já em momento de crise que foi a “lava jato”. Acaba tendo uma pressão para utilizar um mecanismo novo, que não era da nossa tradição jurídica, que é a questão de resolver esses temas por acordo, isso tanto no tema administrativo-cível-reparatório, quanto no tema criminal, que é a Lei de Organizações Criminosas. A gente viu alguns casos, do ponto de vista das delações, em que houve uma má aplicação por parte das autoridades, que foi reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal e parece que o mesmo movimento vai ocorrer do ponto de vista dos acordos de leniência.

Recentemente, a partir de decisões pontuais que o ministro [aposentado Ricardo] Lewandowski deu, no caso do acordo de leniência de uma das empreiteiras, acabou se estendendo [a decisão] para todos, em tese, os envolvidos nos fatos que a empreiteira relatou, por violação à cadeia de prova, que também é uma má utilização por parte da autoridade. Se a autoridade não toma o cuidado de exigir, e ela mesma também resguardar a cadeia de custódia de prova, quem garante que aquilo que estava colocado ali nos anexos corresponde à realidade?

A minha compreensão é que esse tipo de erro tem que ser depurado pontualmente em cada um dos casos para saber se ali houve abuso, se ali houve erro, se ali houve dolo, se ali houve coação, isso tem que ser tudo depurado mesmo e isso se faz caso a caso. Eu não acho que dá para fazer um processo no atacado, assim de pegar todos os acordos, que todos os acordos foram maculados, não funciona assim.

ConJur — Levando em consideração a sua resposta anterior e as recentes decisões que anularam as provas obtidas a partir do acordo da Odebrecht, qual a relevância da cadeia de custódia das provas no âmbito do acordo de leniência?

Igor Tamasauskas — Quando se faz um acordo de leniência com a empresa, você vai separar uma série de documentos, de informações que estão de posse da empresa. Do que normalmente a gente está falando? E-mail, marcação de reunião, conversa telefônica ou por mensagens via WhatsApp, nota fiscal, etc. Quem garante, por exemplo, que uma planilha de Excel, efetivamente, signifique a prova de que aquilo era um controle de propina, contemporâneo à época dos fatos? Existem procedimentos de técnica forense que as empresas que fazem esse tipo de investigação, que auxiliam os advogados, adotam. Elas asseguram que a base de dados é efetivamente aquela de onde saíram aquelas informações. Há um procedimento computacional em que se extrai o hash do arquivo de toda essa prova e dela é que vão ser extraídas as informações. Para quê? Para assegurar que lá na frente alguém vai falar: “não, mas eu não escrevi esse e-mail”, e você tenha como voltar e refazer os passos da investigação.

Quando se faz aquilo que saiu na “vaza jato”, de sair com HDs em sacolas plásticas, não tem como dizer que aqueles HDs saíram efetivamente de dentro da empresa, não tem como dizer se aqueles HDs, do jeito que foram achados determinados documentos, foram produzidos dentro da empresa ou pelas autoridades. A gente está passando por um processo de depuração, esse processo, ao meu ver, não está sendo muito sadio porque implicou em uma atrofia da atuação do Ministério Público e sobretudo no Ministério Público Federal, e isso não é bom, mas eu tenho bastante expectativa de que, ao final, a gente consiga encontrar algum tipo de equilíbrio que salve esse instituto tão importante que é o acordo de leniência.

ConJur — O sr. participou do acordo icônico da Mullen Lowe, o primeiro do país que envolveu todas as autoridades competentes (MPF, agências, TCU etc), em 2018. O que mudou nestes cinco anos?

Tamasauskas — Começou a sair um pouco aquela aura de infalibilidade da “lava jato”, começou a ficar claro que, embora muita gente ali estivesse atuando acreditando no que estava fazendo, tinha gente que estava instrumentalizando uma boa-fé geral. Essa instrumentalização da perseguição da corrupção ficou mais clara, e isso é ruim porque acaba passando uma ideia de que nada adianta, que todo mundo é igual, que as coisas são assim mesmo e o processo que condenou um, amanhã vai ser anulado. Isso passa uma percepção muito ruim para a população. Mas, do ponto de vista estritamente jurídico, a gente depurou alguns passos em tentar criar, por exemplo, uma linguagem única, a partir dos manuais que a Controladoria-Geral da União tem colocado para cálculo de multa e reparação. Os órgãos estão se aparelhando e se adaptando para isso, e o próprio mercado percebeu que o acordo, apesar do trauma, acaba sendo a melhor alternativa porque possibilita precificar o envolvimento de uma empresa em um ato de corrupção.

ConJur — O senhor escreveu artigo na Folha de S.Paulo citando uma analogia que compara o combate à corrupção a uma cozinha. À época, o sr. argumentou que havia muitos cozinheiros, ou seja, autoridades de diferentes frentes atuando nessa seara, incluindo nos acordos de leniência, e que isso seria um contrassenso.  O sr. permanece com essa posição depois de tudo o que aconteceu com a “lava jato”?

Permaneço com essa compreensão. Eu estudei bastante [na tese de doutorado] essa questão da linguagem única, eu estou cada vez mais convencido, porque se você tiver uma receita que seja aplicada por qualquer cozinheiro minimamente habilitado, o prato final vai ter a mesma consistência. Talvez ele tenha um pouquinho mais de sal, um pouquinho mais de pimenta etc, mas ele, ao final, vai ser aquele mesmo prato. Por isso é que eu julgo importante estabelecer manuais de regras e a prática é muito importante, e, mais do que isso, os acordos celebrados servem de paradigma para os próximos. Se você não divulgar os elementos, os dados, os parâmetros, você acaba dando margem para problemas.

ConJur — A natureza persecutória do MP e do MPF não prejudica suas atuações ao negociarem acordos de leniência?

Eu não vejo com esse pessimismo, acho que tem obviamente pessoas que acabam seguindo por essa linha, mas a instituição tentou criar alguns tipos de salva guardas para evitar isso, ao estabelecer notas técnicas, ao criar uma Câmara de assessoramento. Precisamos aprofundar isso para fora do Ministério Público Federal e fazer com que a interlocução com os outros órgãos seja bastante azeitada, para que a CGU mostre os parâmetros de cálculo que eles têm, o TCU mostre os parâmetros de cálculo que ele aceitaria como solução adequada para os casos concretos, porque a corrupção nunca vai ter fim. A partir do primeiro momento que têm dois homens no mundo, um vai dar um jeito de explorar o outro, é da natureza humana.

Óbvio, o Ministério Público acumula competência criminal e quer ir para cima mesmo, e é bom que seja assim, só que na hora de quantificar dano, na hora de entender dos detalhes dos contratos, detalhes dos atos administrativos que sejam corrupção, ele vai precisar do auxílio da CGU, que é um órgão que tem auditores gabaritados e capacitados para isso; vai precisar, por exemplo, do TCU, que também tem corpo técnico para isso. Então o que está faltando é um aprofundamento ainda maior para isso, para ter uma receita, ainda que indicativa, porque você nunca vai esgotar o cardápio da corrupção, mas pelo menos para ter um denominador comum.

ConJur — Hoje, é possível afirmar que essa falta de azeitamento, de unicidade, colaborou para a contestação, por parte das empresas, dos acordos de leniência celebrados no âmbito da “lava jato”? Até porque os próprios órgãos de controle, como o TCU e a CGU, emitiram algumas posições contestando a forma como tudo foi feito…

Existe uma linha de pesquisa na área de Ciências Sociais que fala da competição interinstitucional dos órgãos, seja para a manutenção do poder ou até por conta de suspeita de envolvimento em atos de corrupção. O fato é que isso, em um momento de crise como aquela que a gente viveu, trouxe algum tipo de impacto que não dá ainda para precisar qual foi, mas é óbvio que acabou gerando esse tipo de ruído.

O que a gente precisa fazer é trabalhar sem o moralismo de lidar com esse tema que, além de ser complexo em si, carrega uma emoção negativa, porque ele serve para desgastar adversários, você traz um contexto muito ruim que não permite às pessoas serem racionais.  O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não sofre esse tipo de situação que a gente acaba vendo nos acordos de leniência anticorrupção, ou, se sofre, é em menor grau, porque não atinge a sociedade de uma forma geral com a carga emotiva, como os atos de corrupção atingem. Isso não permite uma discussão muito racional. Só para você ter uma ideia, o Ato Institucional do Golpe Militar de 1964 invoca a corrupção, só para te mostrar como isso faz parte da disputa política desde sempre no Brasil.

ConJur — O sr. já falou, inclusive nesta entrevista, que acordos de leniência não podem ser revistos no atacado, que cada caso é um caso. Dentro deste contexto, como o sr. analisa as discussões em torno do acordo firmado pela JBS com as autoridades, e que agora a empresa tenta revisar?

Me parece que é natural que o acordo seja revisitado, isso se ficar constatado que tinha um erro ali, eu não vejo problema nenhum em isso ser feito. Inclusive o próprio Estado achou que tinha que ser o dobro, o triplo… Se tem erro de premissa, ele precisa ser revisitado. Por isso que eu falei que esses contratos precisam ser revisitados individualmente, em cada caso concreto. ‘Este caso aqui, a conta estava errada porque pegou a base de cálculo x e acabou aceitando y’. Aconteceu no caso da JBS de um dos procuradores falar: ‘Não aceito essa versão’ e ir para cima, independentemente do acordo ter sido celebrado ou não. O que eu defendi na minha tese de doutorado é o seguinte: se eu tenho cinco ou seis órgãos legitimados para ir para cima de uma empresa que cometeu ilícito, ou esses órgãos conversam entre si, ou eles acabam sendo obrigados a aceitar o resultado que um dos órgãos fez.

ConJur — Questiono o sr. sobre esse ponto porque determinados setores da imprensa têm citado as reduções de valores bilionários neste acordo a esmo, sem detalhar as argumentações da empresa e dos outros órgãos envolvidos.

O que eu posso dizer é que, nos acordos em que eu participei, pude, por conta da possibilidade efetiva de negociar, recomendar ao cliente para expressar os argumentos e chegar a um racional decente. O acordo da JBS não dava para fazer isso porque tomaria muito mais tempo que a organização empresarial teria para não se desestruturar por completo. Houve um descasamento entre os acordos de colaboração e de leniência, cujo efeito reputacional — e também econômico — seria catastrófico. E agora faz sentido que seja revisitado, porque está fora da realidade aquele valor.

Entrevista publicada originalmente no Consultor Jurídico.

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