Tramita no Congresso um projeto de lei que pretende disciplinar as relações de direito privado durante este conturbado período da crise capitalista, agravado pela pandemia e pela disputa em torno do preço do petróleo.
O objetivo do projeto do Senador Anastasia (PSDB/MG) parece ser colocar freios ao ativismo judicial e evitar oportunismos por parte de agentes econômicos. Dois exemplos ilustram-no.
Ao impedir a execução de ordem de despejo nas locações prediais urbanas até o final do ano retira dos juízes o poder de seletivamente decidir quais despejos seriam autorizados. Por outro lado, para prevenir oportunismos, delimita os efeitos jurídicos da pandemia a partir de vinte de março (data do decreto legislativo), impedindo alegações de caso fortuito para dívidas antigas e afastando o uso do Código do Consumidor para relações entre empresas. Novamente, neste exemplo, o projeto restringe a arbitrariedade judicial na apreciação de casos concretos.
A preocupação do projeto de lei, não nos enganemos, não é com os aluguéis residenciais, ou com as relações de consumo daqueles que se utilizam de transporte público. Visa regular as relações entre as empresas e impor limites aos juízes de piso. Repudia o modelo Moro de juiz para as relações entre os agentes econômicos, em resumo.
O projeto, portanto, cuida de impor limites à criatividade judicial no âmbito do direito privado. A questão está longe de ser pacífica para os estudiosos do direito. Uma corrente considera mais adequado assegurar-se aos juízes o protagonismo para que, diante de casos concretos, o magistrado diga o que o direito diz. Outra vertente teórica, principalmente depois do que se viu na Lava-Jato, defende que os magistrados estariam limitados na sua criatividade pelos dispositivos constitucionais.
Encontramo-nos no meio do fogo cruzado entre duas percepções míticas a respeito do Direito, em todo o mundo. No Brasil, dada a dramaticidade de nossa realidade bolsonara, ambas podem ser, inclusive, adjetivadas.
Temos o Damarismo Jurídico, integrado por aqueles que viram a Constituição na goiabeira e, contra todas as evidências empíricas, louvam-na como repositório de esperanças e objeto de idolatria e devoção. De outro lado, há os Terraplanistas Jurídicos que, também contra todas as constatações fáticas e todo o saber científico acumulado, defendem que o direito deve se adequar à verdade dos magistrados. Usam a régua destes, contra o horizonte, para provar que o Direito é plano, voltado ao bem comum.
Em tempos de democracia formal o Direito materializa, histórica e concretamente, a relação de forças que se estabelece na sociedade e em suas representações institucionais. Em tempos de Estado de Exceção, como o que experimentamos desde o golpe de 2016, é diferente. O Direito, quando rompida a institucionalidade democrática, se apresenta como em essência realmente é: garantidor de privilégios e repressor das classes populares.
Uma ressalva importante, apositiva: os advogados pendulam entre as duas concepções jurídicas na defesa dos interesses que defendem. Têm que fazer isso. Às vezes o garantismo e a Constituição são a maneira de salvaguardar direitos. Outras vezes a legalidade estrita é prejudicial aos interesses defendidos, e nos socorremos do ativismo para postular que se faça justiça no caso concreto. Esse texto não se configura em crítica à advocacia. Muito ao contrário. Aqui se tenta esboçar uma crítica teórica ao direito (e ao estado) capitalista, à atual regulação estatal das relações sociais, que se encontra em profunda crise. Feita essa digressão, sigamos, com os olhos postos na polêmica teórica em debate no Brasil (inclusive no supremo tribunal federal, sempre em minúsculas desde que se apequenou) entre duas concepções jurídicas, provocativamente adjetivadas.
O Damarismo Jurídico graficamente representa-se pela imagem da pirâmide. Em seu vértice estaria a Constituição (e o Olimpo onde 11 semideuses seriam dela os intérpretes últimos). No Terraplanismo Jurídico, ao contrário, a pirâmide se apresenta invertida, como um funil que recebe todas as informações (inputs) da realidade e dos marcos normativos, estando em seu vértice inferior a solitária figura do juiz da causa, aquele que diz o que o Direito diz na análise do caso concreto (quem desejar se aprofundar no tema deve procurar os estudos de François Ost e Carlos Maria Cárcova).
Ambas as correntes (o Damarismo Jurídico e o Terraplanismo jurídico) constituem-se em mitos que não resistem à confrontação com a realidade. Nas complexas sociedades do capitalismo globalizado a imagem gráfica do Direito se assemelharia mais a um poliedro que juntasse as duas pirâmides sobrepostas e desajustadas; aquela, kelseniana, com a ponta para cima, e aquela com seu vértice na parte de baixo, tendo por núcleo central os interesses das classes dominantes e, em cada uma de suas arestas, mecanismos de coerção indutores da maneira capitalista de existir em sociedade.
No Brasil, depois do Golpe e sob Bolsonaro, o que antes padecia de indigesta abstração resulta mais claro. O direito posto e o direito pressuposto (Eros Grau), como consequência do infatigável esforço da laboriosa magistratura (e da parcela mais nociva da Direita Concursada que a hegemoniza) se apresentam como realmente são, como poder e opressão (sinto saudades do Roberto Aguiar), garantidor de privilégios e da maneira egoísta, individualista, capitalista, de viver em sociedade.
Essa maneira de existir, contudo, não é a única possível. A maior crise capitalista desde 1929 (que engendrou a social-democracia) configura-se também em uma crise do Estado e do Direito. As sociedades não serão as mesmas uma vez terminado o período de isolamento imposto pela COVID-19. Uma nova maneira de existir em sociedade está em gestação. E novas maneiras de regulação das relações sociais se farão necessárias. O Direito, tal como se nos apresenta na atualidade, está torto, disfuncional. A desigualdade social atingiu níveis inaceitáveis.
Encaminhando-me para a conclusão dessa breve reflexão, afirmo que tal constatação não significa que necessariamente sairemos da era das medievais trevas dos mitos (damaristas ou terraplanistas) a respeito do Direito para um luminoso e dadivoso porvir. Lembremo-nos que a crise capitalista de 1929 gerou, ao mesmo tempo, duas grandes alternativas: o Estado Social de Direito e várias autocracias (Hitler, Salazar, Franco, entre outros). Na saída desta atual crise capitalista (e do Estado e do Direito) alternativas semelhantes se apresentarão. Esperemos que a cidadania faça a escolha pela vida, pelo planeta, pela maneira solidária de existir em sociedade.
Por fim, confesso que titubeei. Fiquei com muitas dúvidas em adjetivar as duas principais vertentes teóricas do Direito por temer reações indesejadas por parte dos escassos leitores de tão árido texto.
Escrevo aos operadores jurídicos e aos que se dedicam a tentar entender alguns dos dilemas relacionados à saida da crise atual. Não a todos, obviamente, apenas à parcela que entenderia minha convocação: esqueçam os mitos, critiquem o direito capitalista e não as decisões, compreendam que a judicialização da política é parte do problema. Espero, sinceramente, que não se sintam ofendidos. Adjetivei, pesando a mão, provocativo, para fazer-lhes uma exortação.
Parem de ver a Constituição na goiabeira! O stf já deixou clara a sua posição. Parem de depositar esperanças na justiça da aplicação do direito ao caso concreto! A maioria hedonista da magistratura tem lado na luta de classes.
Lembrei-me da ideia de um texto que ainda escreverei, retomando um tema que já foi até filmado (obrigado, Mauro Menezes, amigo ponderado, que leu o esboço desta reflexão). Um cardeal, fuçando nos arquivos secretos do Vaticano, descobre que Jesus não existiu e que a Bíblia foi inventada três séculos mais tarde. Entra em crise de consciência, uma crise deôntica. Deve revelar isso ao mundo? Como poderiam sobreviver as pessoas que sempre se pautaram pelos mitos diante da revelação da verdade? O mundo ficaria melhor se as pessoas soubessem que o cristianismo era mentira? Um drama ético, portanto.
O Brasil ficará melhor se os operadores jurídicos souberem que as duas correntes em debate, se baseiam em mitos? Que o Direito não é o que parece ser?
As várias vertentes do Direito Alternativo e dos distintos movimentos de Crítica Jurídica a partir dos anos noventa do século passado se dedicaram a denunciar a função do Direito na sociedade capitalista. A conjuntura era outra.
A contemporaneidade brasileira, todavia, onde a Direita Concursada, a meu ver, hegemonizou o aparato repressivo e a magistratura, nos permite alguma ousadia. A guerra de posições nas disputas doutrinárias parece-me ineficaz na conjuntura bolsonara em que teimosos resistimos, embora elas sejam necessárias nas lides judiciais. Todos os que advogam se utilizam do que, iconoclasta, denominei de damarismo e de Terraplanismo jurídicos, não para ofender, mas para suscitar reflexão. Cansei de fazer isso quando ainda sobrevivíamos em um Estado de Direito.
Sendo assim, arrisco colocar em pauta para discussão a atualidade da guerra de movimento, frontal, contra o capitalismo. A pandemia pode ser o meteoro que, em duvidoso humor, simulávamos esperar diante de tamanhas aberrações. Um meteoro que abala, fez balançar, o capitalismo que conhecíamos e os valores em que se assenta. Há vários indícios de que parte das chamadas forças do mercado já não suporta mais o ativismo judicial (o projeto do Senador Anastasia é um deles) e de que o mero garantismo se mostra insuficiente, dada a composição de classe do parlamento brasileiro. Seria o momento de acirrar a crítica ao capitalismo, à propriedade privada dos meios de produção e às suas estruturas institucionais? É hora de agudizar a crítica ao Direito e ao Estado capitalista, abandonando os mitos que nos foram úteis no passado para garantir direitos às classes exploradas?
Pensemos sobre isso.
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