Por Fernanda Mena
Magistradas, advogadas, promotoras e servidoras do Judiciário lidam com temas urgentes e invisibilidade de atribuições domésticas
É uma conta que não fecha. Isoladas em casa, magistradas, advogadas, promotoras e servidoras do Judiciário buscam manter o ritmo de produção pré-pandemia enquanto lidam com os desafios de acesso e estrutura do trabalho remoto e acumulam tarefas domésticas e de cuidados com os filhos.
Agora sem os tradicionais amparos de escola, redes de apoio ou trabalhadoras domésticas.
Apesar de ter alterado profundamente a rotina da vida privada e as dinâmicas de trabalho, a pandemia do coronavírus não mudou um fator fundamental nessa equação: o dia continua a ter 24 horas.
“Sou juíza do trabalho e sei, dos processos, como a falta de separação entre trabalho e casa gera sofrimento e angústia. Tento aplicar esse conhecimento a mim mesma, mas não é fácil.”
Para ela, o que explica “a quantidade extravagante de homens dominando lives” na sua área, justamente aquela com maior presença de juízes do sexo feminino (47%), é o machismo estrutural, que torna homens e mulheres formalmente iguais mas substancialmente diferentes.
“A sobrecarga doméstica traz dificuldades para que a mulher consiga se apresentar com tanta frequência no espaço público porque ela está absorvida pelo espaço privado.”
A divisão por gênero da Justiça é equânime entre servidores e advogados.
Entre magistrados, à exceção da Justiça do Trabalho, ele é bastante desigual e também varia de acordo com a evolução da carreira: mulheres estão mais na base e menos no topo. Apenas 18% dos ministros e 23% dos desembargadores do país são mulheres.
O Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da Justiça do país, criado em 1890, teve apenas três ministras mulheres. Com isso, o Brasil tem a quarta menor taxa de mulheres em tribunais de cúpula dentre 39 países iberoamericanos analisados pelo Observatório de Igualdade de Gênero das Nações Unidas.
“A baixa representatividade da mulher nas instâncias de poder e decisão do Judiciário faz com que sua perspectiva, diferente em razão de contextos históricos, sociais, culturais, não seja considerada”, diz a juíza federal Tani Wurster, diretora da comissão que trata de igualdade de gênero na Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).
“Precisamos introduzir uma lente de gênero no exercício da prestação jurisdicional. Do contrário, ele pode violar direitos das mulheres.”
A advogada Isabela Del Monde, 34, co-fundadora da Rede Feminista de Juristas (deFEMde) diz que essa é uma das causas de uma medida que criou uma situação injusta para as profissionais mulheres: a retomada dos prazos regulares em processos que tramitam em meio eletrônico.
“Se a mulher está sobrecarregada com novas demandas, como ela vai dar conta dos mesmos prazos de antes?”
A retomada dos prazos pelo CNJ foi feita após ação da OAB Federal, cuja diretoria é composta exclusivamente por homens. “O prazo é das coisas mais sérias e importantes do meio jurídico, e esse debate poderia ter ouvido as mulheres.”
Em nota a OAB informou que promoveu uma consulta online sobre o tema e que reconhece a necessidade “construir uma situação de equidade de gênero” na Ordem.
Diante dos desafios impostos pela pandemia, magistrados, juristas e servidores têm lidado com questões essenciais à garantia de direitos: da viabilidade de teleaudiências à regulamentação de medidas de combate ao vírus, do aumento da violência doméstica à efetiva entrega da renda emergencial a quem mais precisa.
“O sistema teve de se desdobrar, e estamos trocando o pneu com o carro andando”, avalia Silvia Chakian, 45, promotora de Justiça do Gevid (Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), que viu aumentarem as notificações e medidas protetivas.
“Eu estou com uma demanda gigantesca porque, além do aumento das notificações, as delegacias estão com menos atendimento e têm tirado o atraso de investigações, acelerando o andamento dos processos digitais”, afirma ela, que transforma a mesa de jantar em escritório quando precisa acompanhar o homeschooling dos dois filhos.
“Falta um olhar para a mulher que está em casa com os filhos e tem de cumprir os mesmos prazos de antes.”
Para Silvia, o cenário é mais delicado entre servidoras e advogadas, muitas sem estrutura operacional e acesso a tecnologia para atuar no novo modelo.
“A quarentena escancara esses abismos”, diz ela, que, mesmo dividindo as tarefas domésticas e parentais com o marido, se sente sobrecarregada. “Sei que sou muito privilegiada, e isso me traz um pouco de culpa. Tem coisa muito mais grave por aí.”
Segundo Claudia Luna, presidente da comissão da mulher advogada da OAB-SP, “as profissionais do direito se vêem assoberbadas com o próprio trabalho, os afazeres domésticos, para os quais não têm mais suporte, nos quais se amparavam para alavancar suas carreiras, e se vêem assoberbadas com os cuidados com os filhos, sem creche e sem escola”.
“As mulheres são sub-representadas e sub-remuneradas e não conseguem encontrar soluções individuais para um problema estrutural”, diz Tani, da Ajufe. “Precisamos achar soluções coletivas, ou vamos continuar ficando para trás.”
A advogada Thayná Yaredy, 33, mãe solo de um menino de 12 anos, nunca pode terceirizar nada além da educação do filho.
“Sou uma mulher negra, mas sou advogada. Estudei, mas continuo precarizada. Se tivesse condições econômicas de ter alguém limpando a casa e fazendo comida, já teria feito meu doutorado”, diz ela, que cursa mestrado em ciências humanas e sociais.
“Moro no meu escritório e mal tenho tempo de comer. Se eu vacilar, coloco em risco nossas possibilidades de sobrevivência”, diz.
Mesmo sub-representadas, as mulheres hoje ocupam a presidência de 3 das 7 principais associações de classe. A juíza Vanessa Mateus, 45, primeira mulher a presidir a Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), maior entidade de juízes da América Latina, avalia que a mudança em direção a uma maior igualdade de gênero na Justiça caminha “num compasso muito lento”.
Sem deslocamentos nem interrupções da vida pré-pandemia, Vanessa, assim como muitos colegas, tem visto sua produtividade aumentar no período de home office. “Todo dia é segunda-feira. E vejo muita gente trabalhando no contraturno”, diz.
O grande desafio para ela é que trabalho e serviços da casa se misturam e ocorrem simultaneamente. “Você não consegue mais fazer essa separação. Fui pra cozinha fazer um arroz no final de uma reunião e deu tudo errado: errei na quantidade, errei no sal. E meus filhos tiveram de dividir um pouquinho de arroz pra cada um.”
“Tem um falseamento de valorização do home office porque você não se desloca, mas ele implica a possibilidade do que chamamos de autoexploração, um processo invisibilizado em que a pessoa fica na posição de produzir o tempo inteiro e com muita dificuldade de disciplina mental para organizar o tempo do rendimento do trabalho das demais atividades da vida”, explica Noemia Porto, da Anamatra.
Para ela, a produtividade em termos numéricos é um instrumental antigo —porque uma mente sobrecarregada é menos criativa e pior na busca de soluções. “Nada disso está sendo considerado agora”, pondera ela, que chama atenção para o fato de as políticas elaboradas sobre o trabalho não terem contado com a participação de representantes mulheres.
A juíza federal Luciana Ortiz, 49, foi mais feliz na sua dobradinha reunião-produção do almoço. “A reunião não acabava. Fechei a câmera e comecei a fazer o almoço. Quando precisei me manifestar, desliguei o fogo, e voltei”, conta.
“É possível conciliar, mas confesso que estou cansada e sobrecarregada”, diz ela, cofundadora do primeiro laboratório de inovação do Judiciário no Brasil e que vem trabalhando em soluções para teleaudiências.
“Com três filhos, tenho um parceiro que efetivamente divide a estrutura familiar, mas é inegável que muitas mulheres têm uma cobrança maior em relação à casa e aos filhos, dificultando a atividade profissional”, declara.
Para a promotora Silvia Chakian, este é o momento de repensar o papel do cuidado. “O custo do papel de heroína, da mulher que dá conta de tudo, precisa ser debatido, porque faz mulheres adoecerem. Neste contexto, os homens são enaltecidos por fazer o que às mulheres foi ensinado como vocação. E esses valores não são mais compatíveis com a sociedade de hoje.”
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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