O Brasil se constitui, pós ditadura civil-militar, num “Estado Democrático de Direito”, assim definido no preâmbulo da Constituição de 1988. Seu objetivo é, em última análise, a realização do princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana e é da sua essencialidade a constitucionalidade e um sistema de direitos fundamentais individuais, coletivos, econômicos, sociais e culturais, acentuado nos princípios da igualdade e justiça social.
Mas o que temos observado é o esvaziamento do estado de bem estar social e a ampliação do estado penal e policial. Sai o cidadão da centralidade e fica o mercado.
Exemplos de desconstrução destas estruturas não faltam e se realizam em todas as esferas dos poderes do Estado, em todas as órbitas federativas e em todos os aspectos fundantes do Estado Democrático de Direito. Mas um exemplo mostra para onde vamos, se não agirmos: o conhecido dossiê antifascista do Ministério da Justiça.
Lembro agora da lição de Roberto Romano: “Na ditadura de 1964 surgiram os Atos Institucionais, vários deles redigidos pelas mãos do mesmo autor da Carta de 1937, Francisco Campos, o nosso Carl Schmitt. Na calada da noite, mesmo decretos secretos, delírio totalitário, foram impostos à Nação. E sempre em nome de causas pretensamente nobres, como o combate à corrupção e a luta contra agentes subversivos. É de Raymond Carré de Malberg uma das mais exatas definições do Estado policial. Naquele poder “a autoridade administrativa pode, de modo discricionário e com uma liberdade decisória mais ou menos completa, aplicar aos cidadãos todas as medidas que ela julga útil a ser tomada por iniciativa dela mesma, para enfrentar circunstâncias e atingir em cada momento os fins que se propõe. O Estado policial se opõe ao Estado de direito” (Contribuição à teoria geral do Estado, Paris, Société du Recueil Sirey, 1920).
Pois bem, entramos no período de eleições municipais em todo o país e o tema da segurança pública, recebe contornos e interesses próprios da disputa local.
Um dos atores que aparece nos debates sobre o tema de segurança é a guarda municipal. Pelo que pude observar, especialmente nos meus tempos de magistratura, é que nesta corporação detectamos um crescente desvio de função, a engrossar o estado policial, e assim fiz registrar em sentenças, votos e declarações de voto que prolatei durante o exercício da jurisdição no TJSP, que torna imprestável a prova produzida.
Naturalizou-se no cotidiano de lugares da cidade e de pessoas demarcadas, que guardas municipais realizam revistas pessoais, o que fazem sem qualquer constrangimento, em evidente abuso, sem respaldo na nossa normativa,
O artigo 144 da Constituição Federal estabelece os cinco órgãos que exercem a segurança pública, quais sejam: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares, corpos de bombeiros militares e a atribuição de cada um destes órgãos policiais.
No §8º, o legislador constitucional defere a possibilidade de criação de guardas municipais e restringe o âmbito de sua atuação: limita-se à proteção dos bens do Município, seus serviços e instalações, consoante dispuser a lei.
É certo, pois, que a Constituição Federal não atribui à Guarda Municipal tarefas relacionadas à segurança pública, em seu sentido restrito, limitando sua função aos bens e serviços municipais. Na qualidade de guardas municipais, estão eles impedidos de exercerem função própria de segurança pública que implique violação à intimidade, à personalidade, residência, etc…
Vejam a lição de José Afonso da Silva in Comentário Contextual à Constituição, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 638/639: Os constituintes recusaram várias propostas no sentido e instituir alguma forma de Polícia Municipal. Com isso, os Municípios não ficaram com qualquer responsabilidade específica pela segurança pública. Ficaram com a responsabilidade por ela na medida em que, sendo entidades estatais, não podem eximir-se de ajudar os Estados no cumprimento dessa função. Contudo, não se lhes autorizou a instituição de órgão policial de segurança, e menos ainda de polícia judiciária. A Constituição apenas lhes reconheceu a faculdade de constituir Guardas Municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Aí, certamente, está uma área que é de segurança: assegurar a incolumidade do patrimônio municipal, que envolve bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens patrimoniais, mas não é de polícia ostensiva, que é função da Polícia Militar. Por certo que não lhe cabe qualquer atividade de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, que a Constituição atribui com exclusividade à Polícia Civil (art. 144, §4º), sem possibilidade de delegação às Guardas Municipais.
O TJSP teve oportunidade de declarar a inconstitucionalidade de normas municipais que excediam as determinações constitucionais , como por exemplo o dispositivo da Lei n. 13.866/06 que fixava, dentre as atribuições da guarda municipal, “exercer, no âmbito do Município de São Paulo, o policiamento preventivo e comunitário, promovendo a mediação de conflitos e o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos”. Confira-se a ementa:
Ação Direta de Inconstitucionalidade – art. 1º, inc. I da Lei n. 13.866/2004, do Município de São Paulo, que fixa atribuições da Guarda Civil Metropolitana – Art. 147 da Constituição Estadual – Proteção dos bens, serviços e instalações municipais – Matéria debatida é atinente à segurança pública – Preservação da ordem pública – Competência das polícias, no âmbito do Estado – Atividade que não pode ser exercida pelas guardas municipais – Extrapolação dos limites constitucionais – Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo. (ADI nº 154.743-0/0-00, Rel. Des. Mauricio Ferreira Leite, j. 10/12/2008).
Igualmente, no campo do direito público, o TJSP rechaçou hipótese que a guarda municipal extrapola as suas funções constitucionais, como se pode ver do julgado: apelação com revisão n° 0000032-47.2011.8.26.0510, 4ª Câmara de Direito Público do TJSP, atinente ao direito fundamental de inviolabilidade de domicílio.
Não se discute, que como cidadãos, os guardas têm a possibilidade de realizar a prisão em flagrante, pois tal é permitido para “qualquer do povo” ( artigo 301 do CPP). Mas é inadmissível que guardas municipais realizem verdadeira atividade de polícia ostensiva, que é função da Polícia Militar, como também não lhes cabe a atividade de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, que a Constituição atribui com exclusividade à Polícia Civil.
Somente o Estado, por corporações próprias, no exercício de sua atividade investigatória e para atender as necessidades da persecução penal, está autorizado a invadir a intimidade do sujeito, direito da personalidade protegido pelo artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.
Dentre outros processos, na apelação 0010425-41.2011.8.26.0248, registrei na declaração de voto que a atuação da guarda municipal, ao realizar monitoramento das pessoas presentes no local dos fatos, a fim de viabilizar eventual flagrante por tráfico ilícito de drogas, e também porque efetuaram outras diligências (busca pessoal no réu e em outros indivíduos), além de busca domiciliar, se deu ao arrepio constitucional e, nesta medida, houve a produção provas ilícitas, violando o disposto no artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. Por certo que, a eventual descoberta de substância entorpecente, não transforma a natureza ilícita da prova, obtida por atuação em policiamento ostensivo e em pratica de atos para a apuração de infrações penais, próprias e exclusivas da polícia militar e civil.
Em tempos de campanha eleitoral, muitos candidatos prometem o que não podem, e reforçam matrizes do estado policial, pelo potencial sedutor destas propostas. Porém também encontramos propostas que visam reconstruir a rede de proteção e segurança. Devem ter várias, mas registro a que recebi de três mulheres de Salvador (Ludimilla Teixeira, Talita Pires e Estrela de Souza), que corajosamente indicam a necessidade de: desmilitarizar a Guarda Civil; rever regimentos disciplinares e estatutos, banindo arbitrariedades que permitem abusos internos; capacitação em direitos humanos; alteração de protocolos que promovem discriminação racial e das pessoas mais pobres. Por outro lado, elas propõem políticas que indiretamente interferem na boa qualidade de segurança (centros de apoio e de convivência para a mulher; núcleos de atendimentos para adolescentes; abertura das escolas municipais aos finais de semana; Iluminação e zeladoria dos espaços públicos; política de redução de danos para tratamento especializado, digno e laico àqueles que sofram transtornos por abuso de álcool e outras drogas).
Os Poderes de Estado têm suas atribuições rigidamente pactuadas na Carta Magna, assim como as instituições vitais para o sistema de justiça e de segurança, e o pleno cumprimento do limite de cada um é que permitirá construir o Estado Brasileiro, nos exatos termos da exigidos pela Constituição.
É preciso reconstruir a teia de proteção e segurança dos brasileiros. Nossa atenção deve ser para que não se avance o estado policial, em cada município, a desnaturar o arcabouço criado pelo constituinte de 1988.
Artigo publicado originalmente no Justificando.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *