728 x 90

O estatuto jurídico da prisão processual no júri e a tese da soberania dos vereditos

O estatuto jurídico da prisão processual no júri e a tese da soberania dos vereditos

O Supremo Tribunal Federal (STF) está debruçado sobre o julgamento, em contexto de repercussão geral, de recurso extraordinário em cujo âmbito postula-se a aprovação de tese apresentada nos seguintes termos: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.

Além disso, ao fim de dezembro de 2019 foi publicada a Lei nº 13.964, que modificou o artigo 492 do Código de Processo Penal (CPP), estabelecendo no inciso I, em sua alínea “e”, o poder do juiz presidente do júri de ordenar a execução provisória da pena imposta àquele que houver sido condenado pelo tribunal do júri à pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.

Ambas as soluções — a da tese postulada e a da lei recém-aprovada — são inconstitucionais pela razão de violarem a presunção de inocência, mas a controvérsia constitucional não se resume a isso, desafiando também a metódica constitucional conforme a tradição iniciada em 1988.

De forma sucinta o propósito deste artigo consiste em tratar da referida metódica constitucional e abordar a pretensão normativa de impor prisão imediata ao condenado pelo júri, pretensão mais extensa no controle de constitucionalidade, via repercussão geral, mais restrita na esfera legal, considerando: I) os limites da interpretação que em processo de mutação constitucional implique em estabelecer orientação contrária a texto expresso da Constituição (CR); II) a identificação da mera circulação de ideias sobre modelos distintos de justiça penal no lugar do transplante de institutos jurídicos.

É possível aplicar validamente norma contrária a texto expresso da Constituição? A resposta afirmativa nos é dada no âmbito mesmo do procedimento do júri, mas também são seus fundamentos que repelem as soluções acima referidas.

Com efeito, o artigo 415 do CPP autoriza o juiz togado a decidir o mérito de pretensão que veicula imputação de crime doloso contra a vida, muito embora o inciso XXXVIII do artigo 5º da CR expressamente reserve ao tribunal do júri a competência “para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida” (alínea “d”).

A regra legal que transfere ao juiz togado a competência constitucional do conselho de sentença para autorizar o magistrado a absolver “desde logo o acusado”, nas hipóteses referidas em quatro incisos do artigo 415 do CPP, tem em comum o reconhecimento peremptório da inocência da pessoa processada.

Trata-se, portanto, de disposição infraconstitucional convergente com a presunção de inocência, cujo âmbito normativo (do inciso LVII do artigo 5º) o STF delimitou no final do ano passado ao julgar a ADC 54.

Assim é que o juiz togado, por força de disposição legal infraconstitucional, “absorve” a competência constitucional do júri e julga crime doloso contra a vida, subtraindo do colegiado leigo essa possibilidade.

O fenômeno jurídico que remonta, pelo menos, à experiência constitucional brasileira do pós-guerra, é denominado “quebra positiva de direitos individuais” e é explicado a partir da noção de que se as normas de direito ordinário não têm o poder de restringir o âmbito normativo daquelas oriundas da Constituição, no entanto elas podem validamente antecipar, acelerar e fortalecer a tutela constitucional no sentido de tornar a tutela mais efetiva.

A respeito do constitucionalismo português, do qual em parte somos herdeiros dada sua influência na nossa transição para a democracia, convém capturar a lembrança de que a busca inicial de orientação com vista à interpretação e aplicação das normas constitucionais considerou parâmetros e limites à interpretação em si de modo a excluir, por incompatível com a ordem jurídica própria do Estado de Direito, aquela interpretação na direção oposta à do teor literal do texto constitucional.

Logo nas primeiras edições de sua clássica obra, J. J. Gomes Canotilho enfatizava a importância de acolher os princípios da prevalência da Constituição, da conservação das normas e da exclusão da interpretação contra legem, metódica dirigida a orientar a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e das constitucionais, em particular.

O limite imposto pelo significado tradicionalmente compartilhado pela comunidade acerca dos termos linguísticos empregados no preceito dispositivo funciona como espécie de fronteira última, não ultrapassável, pelo intérprete, que há de se render — abdicar da própria vontade — à decisão política que o texto legal expressa. Literalmente, em homenagem à tese:

II — O princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição

Este princípio é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autônoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição. Esta formulação comporta várias dimensões: (1) o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais; (2) o princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a constituição; (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas ‘contra legem’ impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo que através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais” [1] (grifos nossos).

O processo de interpretação é o eterno desafio da comunidade aberta de intérpretes da Constituição e não, com exclusividade, apenas um “poder” que possa ser manejado pelas cortes constitucionais sem que seja suscetível de alguma forma de limitação. Do contrário, a qualquer momento e a respeito de qualquer tema as cortes constitucionais estariam na condição privilegiada de usurpar o poder político que a Constituição atribui aos parlamentos e aos chefes do Poder Executivo legitimamente eleitos.

Resgatar o pensamento constitucional dos primórdios da recente transição portuguesa à democracia que, reitero, inspirou o projeto constitucional democrático brasileiro, talvez tenha o mérito de apontar caminhos conforme ao Estado de Direito em tempos de tensão na democracia. Mais uma vez convém citar Canotilho:

“Este princípio (da interpretação conforme) deve ser compreendido articulando todas as dimensões referidas, de modo que se tome claro: (i) a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela; (ii) no caso de se chegar a um resultado interpretativo de uma norma jurídica em inequívoca contradição com a lei constitucional, impõe-se a rejeição, por inconstitucionalidade, dessa norma (= competência de rejeição ou não aplicação de normas inconstitucionais pelos juízes), proibindo-se a sua correção pelos tribunais (= proibição de correção de norma jurídica em contradição inequívoca com a constituição); (iii) a interpretação das leis em conformidade com a constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei ou em manifesta dessintonia com os objetivos pretendidos pelo legislador.

O princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição e respectivos limites não é desconhecido da jurisprudência constitucional. Cfr., por ex., ACSTC 398/89, DR, I, 14-9; 63/91, DR, II, 3-7; 370/91, DR, II, 2-4, 444/91, DR, II, 2-4; 254/92, DR, I, 31-7″ [2].

O professor português, mais adiante, na mesma antiga edição de sua obra, adverte para o fenômeno inverso, da interpretação da Constituição conforme às leis — de que é exemplo a tradicional “absolvição sumária” no procedimento do júri, mencionada linhas atrás — referindo seus imensos riscos, mas ao mesmo tempo demarcando seu campo de possibilidades:

“A utilidade da interpretação constitucional conforme as leis seria particularmente visível quando se tratasse de leis mais ou menos antigas, cujos princípios orientadores lograram posteriormente dignidade constitucional. A interpretação da constituição de acordo com as leis não aponta apenas para o passado. Ela pretende também abarcar as hipóteses de alterações do sentido da constituição, mais ou menos plasmadas nas leis ordinárias” [3].

Esse é o ponto. Como sabido, a arquitetura constitucional brasileira albergou o júri não no capítulo dedicado ao Poder Judiciário (a partir do artigo 93), e sim entre os “direitos e garantias fundamentais”, especificamente sob a égide dos “direitos e deveres individuais e coletivos”.

O “programa da norma constitucional sobre o júri”, para empregar a noção usada pelo jurista de Coimbra, está delimitado no capítulo da Constituição que cuida “dos direitos e deveres individuais e coletivos”.

Trata-se do mesmo “território” constitucional que recepciona a presunção de inocência, proíbe o emprego de provas obtidas por meios ilícitos, assegura o devido processo legal, com os meios e recursos a ele inerentes, e declara ser o juiz o órgão responsável pela tutela dos direitos individuais em jogo.

A concordância normativa entre estas diversas ordens que a Constituição expede na direção do judiciário, com o declarado propósito de tutelar direitos fundamentais individuais, problematiza a questão objeto do recurso extraordinário e da lei nova propondo duas perguntas com respostas necessariamente opostas: I) Em tese excluído da arquitetura específica do poder judiciário, o júri tutela direito fundamental do acusado?; e 2) Existe um “direito fundamental coletivo” a impor a imediata prisão do condenado pelo júri?

A resposta a estas interpelações obrigatoriamente requisita a integração da norma constitucional do júri às demais que gozam do mesmo status, no âmbito da referida “concordância normativa”. A “soberania dos vereditos”, afinal, foi cunhada para proteger o acusado ou para afirmar o poder do júri sobre os demais órgãos da jurisdição?

Caso a tese correta pudesse ser a de uma “soberania do júri” domesticadora dos poderes de correção dos tribunais, a dar origem a um “direito fundamental coletivo” à execução imediata da pena imposta ao condenado no júri, a solução eliminaria qualquer possibilidade de concordância normativa com a presunção de inocência, que ao exigir o esgotamento dos recursos para a execução da pena considera os efeitos do controle da legalidade do processo, da acusação, da obtenção das provas, da garantia do contraditório, etc. sobre toda e qualquer decisão criminal. Não haveria concordância normativa, mas pura e simples exclusão da incidência de normas constitucionais asseguradoras de direitos fundamentais.

Ao tratar da imitação de modelos, a jurista italiana Elisabetta Grande alerta para o risco de que o processo de “importação de soluções jurídicas” resulte em mera “circulação simbólica” de modelos de Justiça a partir do suposto prestígio de que gozaria certo modelo em face dos nativos, referindo-se diretamente à importação simbólica de soluções aplicadas nos Estados Unidos da América [4].

Sem embargo de o júri ser responsável por um percentual pouco expressivo de resolução de casos criminais no âmbito do direito norte-americano, o fato é que tanto nos Estados Unidos da América como no Brasil a decisão sobre o funcionamento da justiça haverá de obedecer aos parâmetros fixados nas respectivas Constituições. As soluções não migram de um país a outro, simplesmente.

No caso brasileiro, não custa relembrar, o Conselho de Sentença não delibera após os jurados discutirem entre si a respeito das teses apresentadas pelas partes durante o julgamento. Não há debate no colegiado leigo, consistindo em única exceção à submissão ao dever constitucional de motivação das decisões (artigo 93, inciso IX, CR).

A soberania do júri, nesse contexto, visa a tutelar o direito fundamental individual do acusado de não ser julgado por um órgão profissional da justiça, ampliando o campo de absolvição para além das hipóteses que a esfera técnico-jurídica própria das decisões dos juízes togados admitiria.

É nesse sentido que a Constituição mesma é interpretada em conformidade com a lei, na hipótese da absolvição sumária, mas não o seria se o legislador ordinário definisse uma “condenação sumária por juiz togado”, ainda que com a concordância do acusado e de seu defensor.

O caráter irrenunciável deste “direito fundamental individual do acusado” configura objeção intransponível à tese da execução imediata da pena no júri. Adotá-la seria equivalente a admitir a tese de que se o acusado estiver de acordo com o emprego de prova ilícita contra ele, por exemplo a tortura, renunciando à proteção constitucional, uma tal lei e uma tal renúncia seriam juridicamente válidas, o que parece um rematado absurdo.

Daí merece ser lembrada a lição de Jellinek, sublinhada por Pablo Lucas Verdú, de que na origem a ideia de mutação constitucional foi concebida como dispositivo de ampliação do direito subjetivo do indivíduo em face da potestade estatal e não o seu contrário [5]. Trata-se de uma teoria de autolimitação estatal e não de expansão do poder do Estado, por qualquer de seus órgãos, incluindo o júri, sobre os direitos individuais.

Trinta anos passados da histórica conferência, uma ordem jurídico-criminal fundada na prevalência do interesse coletivo sobre o individual foi responsável por trágicas páginas no século XX.


[1] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª edição. Coimbra: Almedina, 1993. p. 229-230. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, 2ª reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1226-1227. Dentre os Acórdãos mais recentes cabe referir o Ac. 266/92; Acórdãos, vol. 22, p. 783; Ac. 508/94, in Acórdãos, vol. 28; Ac. 636/94, in Acórdãos, vol. 29; Ac. 41/95 in Acórdãos, vol. 30).

[2] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª edição. Coimbra: Almedina, 1993. p. 229-230. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, 2ª reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1226-1227. Dentre os Acórdãos mais recentes cabe referir o Ac. 266/92; Acórdãos, vol. 22, p. 783; Ac. 508/94, in Acórdãos, vol. 28; Ac. 636/94, in Acórdãos, vol. 29; Ac. 41/95 in Acórdãos, vol. 30).

[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª edição. Coimbra: Almedina, 1993. p. 236 (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, 2ª reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1233-1234).

[4] GRANDE, Elisabetta. Imitação e direito: hipóteses sobre a circulação dos modelos. Tradução de Luiz Fernando Sgarbossa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009. p. 23.

[5] VERDÚ, Pablo Lucas. Estudio preliminar. In: JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Trad. de Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2018. p. XCIII.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

Compartilhe

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *

Mais do Prerrô

Compartilhe