Por Gilberto Bercovici, Giovani Clark, Leonardo Alves Corrêa e Samuel Pontes do Nascimento
Desde os anos 90 do século passado, as teses neoliberais (de regulação e de austeridade)[i] vêm produzindo inúmeras transformações no tratamento jurídico das relações entre capital e trabalho, bem como nas competências dos Estados nacionais soberanos[ii], diminuindo/restringindo o seu papel em setores estratégicos (empresas fornecedoras de insumos especiais) e serviços públicos (saúde, educação, energia, transporte, água), transferindo-os ao setor privado, sobretudo nos países periféricos como o Brasil.
A estratégia de transferência de serviços públicos e empresas estatais[iii] ao domínio do capital, combinada com a produção de uma legislação em prol dos oligopólios privados, em nome de sua “competência e eficiência”, foi supostamente usada para garantir o crescimento econômico e o combate à corrupção. Apesar dos resultados colhidos (concentração de renda, desemprego, destruição ambiental) serem totalmente diferentes daqueles decantados pelo capital e suas máquinas de “violência simbólica”[iv] (mídia, produções intelectuais), os governos e o capital insistiram em defender o neoliberalismo de austeridade, inclusive com vitórias eleitorais significativas e recentes na América Latina e na Europa.
Até semanas atrás, o Estado era chamado dragão do passado, incapaz de realizar um papel de “estabilizador”, “incentivador” e “coordenador” dos processos produtivos no mundo dos negócios, efetivando direitos fundamentais e o “desenvolvimento”, pois era taxado de incompetente, perdulário e “inútil” em zelar pela sociedade. Alguns defendiam, até mesmo, o anarcocapitalismo, ou seja, o fim completo do Estado, em nome do paraíso perdido dos oligopólios privados.
Agora tudo mudou, como em um passo de mágica. A pandemia do novo coronavírus propagou-se mundialmente, e imediatamente as teses neoliberais estão sendo colocadas no fundo dos porões escuros, bem como a sua legislação de austeridade rapidamente abandonada (Lei de Liberdade Econômica, Emenda Constitucional nº 95/2016 relativa ao teto de gastos públicos, etc.). Mais uma vez, o velho Estado tornou-se indispensável à sociedade e salvador do processo produtivo capitalista. O mundo realmente dá muitas voltas e vira de cabeça para baixo.
O setor privado se curva à indispensabilidade do Estado, como já anotado nas lições clássicas do Direito Econômico[v]. Pede investimento e ações públicas em diversos setores a fim de minimizar os efeitos da pandemia, sustentar as cadeias produtivas essenciais, bem como para assistir a multidão de doentes e desprovidos de recursos financeiros.
Assim como em outros diversos momentos da humanidade, como o pós-segunda guerra e a recente crise financeira de 2008, o indispensável Estado é chamado para salvar o capitalismo, não somente em mais uma de suas crises cíclicas econômicas periódicas, mas agora em uma pandemia sanitária mundial.
As políticas socioeconômicas estão mudando radicalmente, e não defendem mais as privatizações na saúde pública, pois evidenciou-se que os hospitais, laboratórios, universidades e centros de pesquisas estatais são competentes para assistir e curar os infectados. Também não se pregam mais as restrições financeiras para as pesquisas públicas, porque são elas que descobrem as vacinas que salvam a humanidade. O teto de gastos públicos não é mais tão útil, pois as empresas precisam de investimentos e créditos para não entrarem em falência e não deixarem a sociedade sem bens e serviços essenciais. Por fim, a política econômica do Estado vem ainda para socorrer os cidadãos que não podem pagar suas contas, por não poderem trabalhar como autônomos ou por não terem seus salários pagos. Além de tudo isso é preciso o Estado controlar os preços e punir aqueles que abusam do poder econômico em tempos de pandemia; nacionalizar empresas estratégicas em risco de falência, bem como impedir/restringir a abertura do comercio, redefinir as linhas de produção das indústrias (fabricar respiradores hospitalares em substituição dos bens anteriores) a fim de evitar a efeitos mais gravosos decorrentes da pandemia e ainda fixar uma renda digna para os cidadãos permanecerem em suas residências.
Em síntese, o Estado é indispensável ao sistema produtivo capitalista, pois ele é crucial para coordenar, incentivar e promover a atividade econômica com justiça social, independentemente de momentos de crise. Assim sendo, o Estado, ao atuar no domínio socioeconômico, deve realizar seu papel de forma planejada e dentro dos ditames constitucionais[vi], antes, durante e depois da pandemia, a fim de diminuir os impactos no tecido social e realizar o desenvolvimento da nação.
[i] CLARK, Giovani, CORREA, Leonardo, NASCIMENTO, Samuel. O Direito Econômico, o pioneirismo de Washington Peluso Albino de Souza e o desafio equilibrista: a luta histórica de uma disciplina entre padecer e resistir. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 301-324, jul./dez. 2018.
[ii] BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição. 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
[iii] OCTAVIANI, Alessandro, NOHARA, Irene Patrícia. Estatais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019
[iv] SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o pais se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
[v] COMPARATO, Fábio Konder, O Indispensável Direito Econômico. Revista dos Tribunais nº 353, São Paulo, RT, 1968, pp. 14-26. SOUZA, Washignton Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2017.
[vi] CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Curso Elementar de Direito Econômico. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2014.
Artigo publicado originalmente no Portal Disparada.
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