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O juiz que escolheu o processo

“O processo não é apenas um instrumento técnico, mas sobretudo ético”
Ada Pellegrini Grinover (1)

O presente artigo pretende fazer uma breve análise sobre a prorrogação da competência do Juízo da 13a Vara Federal na Ação Penal n.5046512- 94.2016.4.04.7000/PR, na qual o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado a nove anos e seis meses de reclusão, e multa pela da prática de (i) corrupção passiva por suposto recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência de contrato com a Petrobrás, e (ii) lavagem de dinheiro, em razão de suposta ocultação e dissimulação de titularidade de imóvel localizado no Guarujá, em SP.

A sentença que condenou o ex- presidente Lula decidiu , em seu item II.5 (2), acerca das questões de competência arguidas pelas defesas. Em síntese, o Juiz reafirmou a competência da 13a Vara Federal de Curitiba para o julgamento daquela ação penal, sob os seguintes argumentos:

a) por ser a Petrobras uma sociedade de economia mista, a competência seria da Justiça Federal;

b) por não mais exercer o cargo de Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva não poderia ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal;

c) por haver todo um “contexto”, já reconhecido pelo “Tribunal de Apelação e pelos Tribunais Superiores de que esses casos são conexos e demandam análise conjunta, por um mesmo Juízo, sob risco de dispersão da prova” e, por fim

d) O Juízo da 13a Vara Federal, do qual o Juiz sentenciante é o titular, tornou-se prevento para estes casos, pois, a investigação iniciou-se a partir de crime de lavagem de dinheiro consumado em Londrina/PR e que, supervenientemente, foi objeto da ação penal n. 5047229-77.2014.404.7000

O processo n. 5047229-77.2014.404.7000 (3), utilizado pelo Juiz da 13a Vara Federal para a prorrogar sua competência para processar e julgar a ação penal n.5046512-94.2016.4.04.7000/PR, (caso Lula ) iniciou-se de inquérito instaurado em 2006, para a apuração de crimes de lavagem de dinheiro praticados por Alberto Youssef, Carlos Habib Chater, Carlos Alberto Pereira da Costa, Ediel Viana da Silva e o falecido ex-deputado José Janene.

O referido processo n.5047229-77.2014.404.7000 guarda, ainda, elementos de estreita conexão de fatos apurados em processo midiático diverso, a Ação Penal 470, denominada Mensalão, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2012 (4).

Tal conexão é recorrentemente corroborada nos autos do processo n. 5047229-77.2014.404.7000, destacando-se a Representação da Autoridade Policial (5) e a Denúncia (6) que deu início à instrução criminal.

Em suma, esse é o processo que determina, na concepção do magistrado Sergio Moro, a competência, pela prevenção, de centenas de outros inquéritos e ações penais da denominada lava-jato.

Essa intrínseca relação, que se fez entre a Ação Penal 470 e o processo-crime n. 5047229-77.2014.404.7000 que foi utilizado, precisamente, para estabelecer a competência para processar e julgar a Ação Penal n.5046512-94.2016.4.04.7000/PR- caso Lula, são de extrema relevância e merecem uma reflexão.

O equivocado prisma utilizado para assentar a competência do Juiz da 13a Vara Federal de Curitiba, que, posteriormente, condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não parece ter sido escolhido por acaso. Faz-se necessário rememorar o ano de 2012, bem como os eventos que antecederam o julgamento da Ação Penal 470/DF.

Para a preparação do midiático julgamento, para análise das provas produzidas por quarenta réus e sua subsequente valoração para elaboração dos votos a serem proferidos por aquela Suprema Corte, foram convocados alguns Juízes Federais de 1a Instancia.

Um desses magistrados convocados foi o Exmo. Sergio Fernando Moro, atual juiz titular da 13a Vara Federal de Curitiba, e encarregado de auxiliar a Ministra Rosa Weber, naquela ocasião.

Em 2013, logo após encerrar sua função no Supremo Tribunal Federal, o Juiz Sergio Moro retornou ao Paraná.

Coincidentemente, o processo n. 5047229-77.2014.404.7000 (inquérito n. 20067000018662-8) ressurge das cinzas, naquele mesmo ano. Entretanto, veja-se, que em vez de enviá-lo ao Supremo Tribunal Federal – pela conexão com os fatos lá julgados, AP 470 – resolveu, por si só, o futuro daquele Inquérito que começou a ganhar vida independente.

No decorrer das investigações, realizadas no processo n. 5047229- 77.2014.404.7000, que a princípio visavam identificar esquemas de lavagem de dinheiro, foram autorizadas, pelo Juiz da 13a Vara Federal, inúmeras cautelares, tais como interceptações telefônicas – que tiveram como alvo, inclusive deputados que detinham foro privilegiado, quebras de sigilo bancário e fiscal, além buscas e apreensões em diversos pontos do pais. Enfim, a investigação não se limitava mais a circunscrição do Estado do Paraná.

Talvez o Juiz Sergio Moro, naquela ocasião, não tenha vislumbrado a totalidade do estava por vir, mas tinha uma visão muito nítida do que se tornou a Ação Penal 470 e, que esse processo n. 5047229-77.2014.404.7000, por certo, poderia ser a sua extensão.

A partir de um determinado momento, sem um rumo certo ou parâmetro razoável de limite, as investigações sob sua alçada se avolumaram e, ao serem descobertos outros fatos supostamente criminosos, foram chamados pelo Juiz da 13a Vara Federal, simplesmente, de “encontro fortuito de provas”. (8)

Vários inquéritos foram instaurados a partir de desmembramentos do Inquérito inicial que originou a Ação Penal n. 5047229-77.2014.404.7000 e, ainda, que os fatos tivessem sido praticados em outro Estado da Federação, todos foram distribuídos, por determinação do Juiz Sérgio Moro, por prevenção, à 13a Vara Federal.

Nessa perspectiva, de forma kafkaniana, eventos incidentais e aleatórios ligariam a anterior distribuição do processo n. 5047229-77.2014.404.7000 à 13a Vara Federal de Curitiba e a Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, que levaria à única condenação de um ex-Presidente da República, na história do país.

Mais estranho se torna a fixação da competência do Juízo da 13a Vara Federal quando se analisa que essa se deu em total violação às normas processuais e constitucionais.

Nossa legislação processual penal impõe como regra a competência territorial, definida pelo lugar da consumação do delito. Isso está absolutamente claro no artigo 70 do Código de Processo Penal:

“Art. 70 -A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, em caso de tentativa, pelo o último ato de execução”.

A falta de observação dessas regras elementares de competência leva a violação de princípios constitucionais do juiz natural estabelecidos no art. 5o inciso XXXVII – “Não haverá juízo ou tribunal de exceção” e ainda, no art. 5o. inciso LIII “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” da Constituição Federal.

Leciona com grande acerto Luigi Ferrajoli sobre a garantia do juiz natural “Ela significa, precisamente, três coisas diferentes ainda que entre si conexas: a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais” (9)

O princípio do juiz natural assegura, por conseguinte, a indispensável imparcialidade do juiz que é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente. Nesse sentido o juiz deve ser pré-constituído por lei para o exercício de sua função jurisdicional.

Por conseguinte, as violações com relação as regras de competência levam a evidente nulidade prevista no art. 564, inciso I do Código de Processo Penal.

Como bem apontou a defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, em suas alegações finais, os fatos sob apuração teriam ocorrido em dois locais distintos, São Paulo e ou Brasília, o que deveria deslocar a competência da 13a Vara Federal de Curitiba. Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal já se manifestou na Questão de Ordem no Inquérito 4130 (10) , num dos processos da mesma operação da seguinte forma:

“A competência para processar e julgar os crimes delatados pelo colaborador que não sejam conexos com os fatos objeto da investigação matriz dependerá do local em que consumados, de sua natureza e da condição das pessoas incriminadas (prerrogativa de foro).”

(…)

“A prevenção, essencialmente, não é um critério primário de determinação da competência, mas sim de sua concentração, razão por que, inicialmente, devem ser observadas as regras ordinárias de determinação da competência, tanto ratione loci (art. 70, CPP) quanto ratione materiae”

Depreende-se, portanto, que a prorrogação da competência da 13a Vara Federal de Curitiba, determinada pelo Juiz Sérgio Moro, ocorreu em total desacordo com as regras de definição de competência elencadas na legislação processual.

Ao deixar de obedecer às regras de competência da legislação vigente, para impor a sua indubitável vontade de processar e julgar determinado processo, por si só, já caracteriza ausência da imparcialidade necessária para que um Magistrado exerça sua função jurisdicional. Característica essa ampliada pelo modo em que conduziu tanto o processo n. 5047229-77.2014.404.7000, tanto a Ação Penal a que se refere esse artigo.

Conclui-se que a imposição e insistência da prorrogação de sua competência por parte do Juiz da 13a Vara Federal, com base na alegada prevenção gerada pelo inquérito quer gerou o processo-crime n. 5047229-77.2014.404.7000 e com recorrentes referências à Ação Penal 470 leva à crer de a denominada Operação Lava Jato teria sido concebida e inaugurada como extensão da AP 470 e, nesse sentido, mostra-se patente a suspeição do Juiz sentenciante.


(1) JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 310.

(2) Fls. 33/34.

(3) Anteriormente, inquérito n. 2006.7000018662-8.

(4) Remontando ao ano de 2012 – ocasião do julgamento da Ação Penal 470, recorda-se que além de liderar todos os índices de audiência até mesmo da TV Justiça, deu origem a figura do herói togado do tipo justiceiro.

(5) Representação da Autoridade Policial. “É fato que Alberto Youssef possui acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal de só falar a verdade. Indagado por esta autoridade policial, disse se amigo de José Mouhamed Janene, o Deputado Federal esposo de Stael Fernanda…(..) inclusive ele (YOUSSEF) foi interrogado pelo MM. Juiz Sergio Moro, pelo fato de ter sido visto pela imprensa no Aeroporto de Congonhas, a companhia do Deputado e seu assessor José Genu, respondendo que não possui qualquer negócio com ele.
Perante a CPMI dos Correios, no ano de 2005, disse sob juramento, que TONINHO DA BARCELONA mentiu, pois eu não apresentou JOSÉ JANENE à Corretora de valores Bônus Banval em São Paulo, acusada de ter servido de ponte para que o Deputado pudesse receber, por intermédio de interpostas pessoas, os recursos oriundos de Marcos Valério, no escândalo do Mensalão. ”

No entanto, dentro das investigações contidas no IPL supra, foram encontrados alguns indícios de que ALBERTO YOUSSEF teria sim contatos comerciais com a Corretora Bônus Banval a qual é apontada pelo relatório da CPMI dos CORREIOS, por carrear recursos desviados por MARCOS VALERIO para as pessoas indicadas por JOSÉ JANENE, (grifos nossos), entre elas (…) (…) e(..) que estariam “lavando” dinheiro do deputado JOSÉ JANENE. ”

(6) Denúncia do Ministério Público Federal. “Aos denunciados acima referenciados é imputada, entre outras, condutas ilícitas, a prática de crime de lavagem de dinheiro pela movimentação, dissimulação e conversão em ativos lícitos de recursos originários, dentre outras fontes, do denominado esquema “Mensalão”, objeto da Ação Penal n. 470/DF”

(8) Despacho Juiz Sergio Moro – nos autos do pedido de quebra de sigilo telefônico de dados e/ou telefônico autos n. 5048111-73.2013.404.7000/PR –IPL 1041/2013 – inquérito instaurado (…) por indícios de atuação paralela no mercado paralelo de cambio e ocultação de bens e valores identificados nos autos do IPL 714/2009 “(…) A partir do início da interceptação, foram colacionadas mais provas do envolvimento de Carlos e associados em atividades ilícitas. Há indícios do envolvimento de Carlos em atividades que envolvem grande fluxo financeiro, aparentemente câmbio ilegal e lavagem de dinheiro, utilizando-se para tantas empresas de fachada e pessoas interpostas.

No curso da interceptação, surgiram indícios da pratica de crimes por terceiros que não compões o grupo criminoso dirigido por Calos Chaer, em espécie de encontro fortuito de provas”(…)”O presente feito desmembrado teria por objeto as atividades do suposto operador de câmbio negro Alberto Youssef, personagem notoriamente atuante no mercado paralelo de câmbio, cujas atividades ficaram conhecidas no assim denominado “Caso Banestado”. Defiro, portanto, o desmembramento requerido.

Esclareço que decidi sem a oitiva prévia do MPF em vista da urgência alegada pela autoridade policial”

(9) Direito e Razão -Teoria do Garantismo Penal, Luigi Ferrajoli, 3a ed. Revista dos Tribunais, pg 543

(10) Decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a Questão de Ordem no Inquérito 4130 – Paraná do qual foi Relator o Min. Dias Toffoli:
“(…)Imbricação da matéria com o desmembramento do feito e seus consectários. Necessidade de seu exame para a determinação do juízo de primeiro grau competente para processar e julgar o feito desmembrado. Crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e corrupção passiva. Colaboração premiada. Delação de crimes não conexos com a investigação primária. Equiparação ao encontro fortuito de prova. Aplicação das regras de determinação, de modificação e desconcentração da competência. Inexistência de prevenção, pelas mesmas razões, tanto de Ministro da Corte quanto de juízo de origem. Crimes que, em sua maioria, se consumaram em São Paulo. Circunstância que justifica a sua atração para a Seção Judiciária daquele estado. Ressalva quanto à posterior apuração de outras infrações conexas que, por força das regras do art. 78 do Código de Processo Penal, justifiquem conclusão diversa quanto ao foro competente. Remessa do feito desmembrado à Seção Judiciária de São Paulo para livre distribuição, independentemente da publicação do acórdão. Intangibilidade dos atos praticados na origem, tendo em vista a aplicação da teoria do juízo aparente. Precedente.

Artigo publicado originalmente no livro “Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula”.

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