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O princípio da igualdade na perspectiva racial e a constitucionalidade das cotas no sistema OAB

O princípio da igualdade na perspectiva racial e a constitucionalidade das cotas no sistema OAB

Por Carlos Roberto Siqueira Castro

Cumprimento todos os colegas e amigos que me assistem nessa audiência pública promovida pela Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do Conselho Federal da OAB. Primeiramente, quero agradecer o honroso convite que me foi formulado pela Dra. Silvia Cerqueira, presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do CFOAB. Minha ex-colega do Conselho Federal, que engrandeceu a valorosa bancada da Bahia no nosso Colegiado maior com sua inteligência, cultura, dedicação e compromisso com as causas da igualdade.

Saúdo toda a diretoria da Seccional da OAB da Bahia e bem assim toda a advocacia baiana na pessoa do ilustre e querido amigo Luiz Viana Queiroz, ex-Presidente da OAB da Bahia e Vice-presidente do Conselho Federal da OAB.

Proximamente, teremos de analisar e votar no âmbito do CFOAB a judiciosa proposição do ilustre e estimado conselheiro federal André Luiz de Souza Costa, competente e douto colega que abrilhanta a bancada do Ceará. A proposta formulada pelo Conselheiro Federal André Luiz consiste na adoção da reserva de cotas para negros e pardos no percentual de 30% dos cargos na diretoria e de Conselheiros perante o CFOAB, perante os Conselhos Seccionais e as Subseções da OAB em todo o Brasil.

É oportuno ressaltar que, ao ensejo da transcrição da minha fala proferida na audiência pública promovida pela Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do CFOAB para inclusão no texto deste artigo, restou aprovado pelo Conselho Federal da OAB, na sessão do dia 14 de dezembro de 2020, a adoção e implementação das cotas raciais no Sistema OAB no percentual mínimo de 30%, pelo prazo correspondente à realização de 10 (dez) eleições, ou seja, inclusive nas eleições de 2021 até o pleito eleitoral a realizar-se em 2048. Assim é que as cotas raciais, enquanto expressão de política afirmativa, foram aprovadas no montante de 30% para todo o sistema de cargos eletivos da OAB, respeitada a paridade de gênero, ou seja 15% para homens e 15% para mulheres negras e afrodescendentes. Vale lembrar que, anteriormente, na sessão realizada no dia 17 de agosto de 2020, o Pleno do Conselho Federal da OAB já havia aprovado proposição que insere a autodeclaração de cor e raça como requisito obrigatório para inscrição de bacharéis em direito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, providência indispensável para a caracterização étnica dos advogados e advogadas brasileiros.

Por outro lado, no mês de março de 2021, a Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do CFOAB, por sua ilustre e dinâmica Presidente, Dra. Silvia Cerqueira, apresentou ao superior exame do mais Alto Colegiado de nossa corporação de classe um bem elaborado “Manual de Procedimentos para Implementação das cotas raciais no Sistema OAB”, que objetiva estruturar e adotar medidas com vistas a padronizar a implantação das cotas raciais no âmbito da OAB Nacional (Diretoria e Conselho Federal), das Seccionais (Diretoria e Conselhos Seccionais) nos 26 Estados da Federação e no Distrito Federal, das Subseções (Diretoria e Conselhos Subseccionais), bem como na diretoria das Caixas de Assistência dos Advogados, na diretoria da Escola Nacional da Advocacia e das Escolas Superiores de Advocacia nas Seccionais da OAB e nas Comissões Permanentes e Temporárias na esfera do Conselho Federal e das Seccionais da OAB.

I – Questão preliminar – Inaplicação do princípio da anualidade eleitoral (art. 16 da Constituição Federal)

Impende destacar, em preliminar, questão suscitada por alguns eminentes colegas do Conselho Federal da OAB, consistente em se saber se a proposição do mecanismo compensatório de cotas raciais nas eleições para cargos eletivos no sistema OAB, a ocorrerem na segunda quinzena do mês de novembro de 2021,2 viola, ou não, o princípio da anualidade eleitoral inscrito no artigo 16 da Constituição Federal, com a redação seguinte: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data da sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data da sua vigência”.3

Tenho para mim que não. A adoção do sistema de cotas raciais pode ser aplicada de imediato nos pleitos eleitorais da OAB em todo o país, eis que, em razão da matéria, não integra o conceito e a sistemática do processo eleitoral aplicável à representação política. Nesse sentido, são uníssonas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e a doutrina mais abalizada. Se não, veja-se.

Discorrendo sobre o tema, sustentam, em obra conjunta, o Ministro Gilmar Mendes, do STF, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco: “O processo eleitoral consiste num complexo de atos que visam a receber e transmitir a vontade do povo e que pode ser subdividido em três fases: a) a fase pré-eleitoral, que vai desde a escolha e apresentação das candidaturas até a realização da propaganda eleitoral: b) a fase eleitoral propriamente dita, que compreende o início, a realização e o encerramento da votação; c) fase pós-eleitoral, que se inicia com a apuração e a contagem de votos e finaliza com a diplomação dos candidatos”.4

De igual modo, apregoa o Ministro Celso de Mello, do STF: “Definido, assim, de um lado, o sentido jurídico-constitucional da expressão processo eleitoral – que se inicia com as convenções partidárias e a apresentação de candidaturas e termina com o ato de diplomação… Na realidade, a cláusula inscrita no art. 16 da Constituição – distinguindo entre o plano de vigência da lei, de um lado, e o plano de sua eficácia, de outro – estabelece que o novo diploma legislativo, emanado do Congresso Nacional, embora vigente na data da sua publicação, não se aplicará às eleições que ocorrerem em até um ano contado da data de sua vigência, inibindo-se, desse modo, a plenitude eficacial das leis que alterarem o processo eleitoral”.5

Noutra assentada doutrinária, preconizam Fabrício Souza Feijão e Hênio de Oliveira Aragão em artigo dedicado ao tema: “Desta forma, o disposto no art. 16 da Lei Fundamental busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação do processo eleitoral. Não obstante tal finalidade, em uma simbiose analiticamente inafastável, o art. 16 representa uma garantia individual do cidadão-eleitor…Entendimento a partir do qual se extrai que, embora a norma legal esteja, sim, vigente, a sua eficácia terá seus efeitos paralisados enquanto não decorrer o lapso temporal de um ano. Passado o período de latência da norma, aqui não se confundindo com a ‘vacatio legis’, sua eficácia ganhará plenitude de efeitos”.6

Focalizando diretamente a vertente questão acerca da adoção do sistema de cotas raciais no âmbito das eleições da OAB, em judicioso parecer encomendado pela consulente Comissão Nacional da Mulher Advogada, do Conselho Federal da OAB, a jurista Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, de Brasília, houve por bem concluir: “Como já dito, o art. 16 da Carta Política tem seu objeto claramente definido, qual seja, normas que alterem o “processo eleitoral”. O Supremo Tribunal Federal, de seu turno, por mais de uma vez e sem vacilações, conferiu interpretação estrita ao termo “processo eleitoral”, para dele extrair apenas as fases compreendidas entre “convenções partidárias, realização de votações e diplomação”. Nesse cenário, difícil imaginar como a implementação de uma política afirmativa de gênero e de raça, com o estabelecimento de percentuais mínimos a serem cumpridos linearmente por todas as chapas, que tenham aptidão para interferir nos critérios e requisitos de realização de convenções, muito menos no que concerne à realização das votações e, por fim, quanto à diplomação. Daí a primeira conclusão de que, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, normas que implementem políticas afirmativas lineares, a todos imponível, em tema de disputas eleitorais, não versam “processo eleitoral”, tal como a expressão foi definida pela Suprema Corte, a elas sendo manifestamente inaplicável, portanto, a norma inscrita no art. 16 da Carta Política. Isso porque, …apenas normas casuisticamente forjadas para pertubar determinada disputa, mediante intencional favorecimento ‘ad hoc’ de determinados atores, em detrimento dos demais, atraem a força paralisante do art. 16 da Carta Política, que foi justamente concebida para neutralizar eventuais ações normativas desviantes por parte de maioria ocasionais.”7

Em outra consulta, também formulada pela Comissão Nacional da Mulher Advogada do CFOAB, a jurista e ex-Ministra do Tribunal Superior Eleitora, Dra. Luciana Lóssio, desta feita focalizando a igualdade de gênero no sistema eleitoral da OAB, cujas ponderações são inteiramente aplicáveis ao contexto das cotas raciais, deixou assentado: “Nesse sentido, destaca-se que, ao apreciar temas relacionados à participação feminina na política, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral tem sinalizado que qualquer reforço a ação afirmativa opera efeitos imediatos, não se sujeitando ao princípio da anualidade. Oportuno lembrar que, em 15.3.2018, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 5617, Rel. Min. Edson Fachin, assentando que, por imperativo de igualdade, as candidaturas femininas devem ter a mesma oportunidade de acesso aos recursos do Fundo Partidário para financiamento eleitoral, garantindo-se patamar mínimo (30%). O Tribunal Superior Eleitoral aplicou idêntica orientação quanto ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e à distribuição do tempo de propaganda no horário eleitoral gratuito (Consulta nº 0600252-18, Rel. Min. Rosa Weber, julgada em 22.5.2018). Embora tais inovações tenham surgido nos meses de março e maio de 2018, ano de eleições gerais no Brasil, foram aplicadas no pleito daquele mesmo ano de 2018 sem que se cogitasse vulneração ao princípio da anualidade, pois representavam mero desdobramento de ação afirmativa existente.”8

Nesse mesmo diapasão, ao julgar a ADPF 738, o Supremo Tribunal Federal referendou decisão liminar proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, em contexto em que se discutia critérios para garantir financiamento eleitoral e tempo de propaganda para candidatos negros e negras.9 Nessa assentada, para afastar a incidência da restrição quanto à eficácia temporal constante da regra do art. 16 da Constituição da República, considerou o Ministro Ricardo Lewandowski em decisão prolatada em 9.9.2020: “A Justiça Eleitoral apenas introduziu um aperfeiçoamento nas regras relativas à propaganda, ao financiamento das campanhas e à prestação de contas, todas com caráter eminentemente procedimental, com o elevado propósito de ampliar a participação de cidadãos negros no embate democrático pela conquista de cargos políticos.” A ementa do acórdão na APDF 738, que referendou a medida cautelar deferida monocraticamente, é sobremodo ilustrativa no que respeita à inaplicabilidade do princípio da anualidade eleitoral no cenário do modelo de ação afirmativa respeitante às cotas raciais. Em textual: “REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FEDERAL. POLÍTICAS PÚBLICAS DE CARÁTER AFIRMATIVO. INCENTIVO A CANDIDATURAS DE PESSOAS NEGRAS PARA CARGOS ELETIVOS. VALORES CONSTITUCIONAIS DA CIDADANIA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. IGUALDADE EM SENTIDO MATERIAL. …NÃO INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE OU ANUALIDADE (ART. 16 DA CF/88). MERO PROCEDIMENTO QUE NÃO ALTERA O PROCESSO ELEITORAL. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA. I – Políticas públicas tendentes a incentivar a apresentação de candidaturas de pessoas negras aos cargos eletivos nas disputas eleitorais que se travam em nosso País, já a partir deste ano, prestam homenagem aos valores constitucionais da cidadania e da dignidade humana, bem como à exortação, abrigada no preâmbulo do texto magno, de construirmos, todos, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, livre de quaisquer formas de discriminação. II – O princípio da igualdade (art. 5º, caput, da CF), considerado em sua dimensão material, pressupõe a adoção, pelo Estado, seja de políticas universalistas, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de políticas afirmativas, as quais atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo-lhes certas vantagens, por um tempo definido, com vistas a permitir que superem desigualdades decorrentes de situações históricas particulares (ADPF 186/DF, de minha relatoria). Precedentes. III – O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que só ocorre ofensa ao princípio da anterioridade nas hipóteses de: (i) rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos ou candidatos no processo eleitoral; (ii) deformação que afete a normalidade das eleições; (iii) introdução de elemento perturbador no pleito; ou (iv) mudança motivada por propósito casuístico (ADI 3.741/DF, de minha relatoria). Precedentes…”

II – A proposição da adoção de cotas raciais ao sistema eleitoral da OAB

A bem inspirada proposição da lavra do eminente Conselheiro Federal André Luiz de Souza Costa, da valorosa bancada do Ceará no Conselho Federal da OAB, toca fundo nas realidades dramáticas do racismo estrutural que vige e envergonha o nosso país como fruto intragável do regime escravocrata que vigorou no Brasil desde a era colonial. De minha parte, posso adiantar que sou entusiasta e apoiador de primeira hora dessa proposta que visa, minimamente, abrir os caminhos para a implantação da igualdade de raça em nossa comunidade da OAB.

Já tive a oportunidade de sustentar em obra doutrinária10 que o sistema de cotas raciais responde historicamente aos ideais das chamadas ações afirmativas e das discriminações benignas, que visam acelerar o processo civilizatório de redenção do odioso cenário de discriminação social, econômico e cultural que inferioriza o grande contingente de afro-brasileiros e seus descendentes. A imensa população de negros e pardos foi e continua sendo vítima do regime escravocrata em nosso país. Em pleno século 21 continuam presentes e insofismáveis as sequelas da escravidão implantada no Brasil desde o período colonial. Pode se afirmar, em perspectiva histórica, que os escravizados e seus descendentes continuam a ser os mesmos nesta antiga colônia de Portugal, na monarquia e na república que se seguiu até os nossos dias. Tanto mais que o Brasil foi o último país do ocidente a abolir formalmente a escravidão.

Nesse sentido, o sistema de cotas raciais parte da premissa e da convicção histórica de que somente pela via de um tratamento diferenciado, preferencial e benéfico no plano da ordem jurídica se poderá verdadeiramente alcançar maior igualdade para os segmentos sociais histórica e brutalmente discriminados na vida brasileira, notadamente os negros e pardos. A adoção de políticas legislativas protecionistas e corregedoras do estigma da inferioridade social e econômica é fundamental para a superação dos preconceitos históricos e culturais enraizados na consciência e no inconsciente coletivo da nação.

Por outro lado, sabe-se que o enfrentamento e a superação das discriminações e dos preconceitos históricos, sociais, econômicos e culturais acham-se condicionados ao provimento de condições materiais indispensáveis ao desfrute de uma vida digna, ou seja, à fruição de bens e valores existenciais básicos, como o acesso e obtenção da alimentação, moradia, educação, cultura, saúde, trabalho, transporte, segurança, seguridade e assistência social, que traduzem a convivialidade justa e fraterna nos aglomerados humanos, nas cidades e no campo. A fruição desse bens e serviços constituem pré-condições sem as quais os seres humanos historicamente discriminados, como é o caso dos negros, pardos e seus descendentes afro-brasileiros, continuarão a sofrer toda sorte de carências, sofrimentos e angústias que os afastam dos patamares mínimos da dignidade humana e do bem estar individual e coletivo. Nesse sentido, a Constituição da Itália, de 1947, estabelece, no artigo 3º, com larga visão pragmática e sociológica: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais. Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e econômica que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País.” Esse modelo de visão do constituinte italiano acerca das disparidades perversas que imperam na realidade da existência traduz o objetivo de superação do princípio da igualdade formal e burguesa e que impõe ao Estado e à sociedade o imperativo da busca permanente e crescente da igualdade material a fim de que todos possam, em condições igualitárias mínimas e essenciais, desfrutar dos bens da vida e da riqueza nacional. Sem dúvida, aí está o caminho para o enfrentamento da discriminação e do preconceito racial. Nesse sentido, já tive a ocasião de expor em sede doutrinária: “E foi na trilha desse entendimento formalístico e ultraliberal, fiel às mais legítimas tradições franco-anglo-americanas, que o constitucionalismo brasileiro delineou o sentido e o alcance do nosso princípio da isonomia…Vale assinalar, neste passo, que a teorização pátria do princípio igualitário, posto que atrelada à concepção formalista e burguesa da igualdade, desprezou por completo o problema da igualdade dita real ou material, acatando, assim, os postulados do liberalismo clássico, por demais condescendentes para com as desigualdades sociais geradas pelo regime de incontrolada concorrência econômica… Tal se explica por que a igualdade real ou material entre os homens no convívio social depende em grande parte do modelo político-econômico adotado pelas nações, e não do fato de o Estado estar subordinado a uma ordem jurídica que imponha de forma abstrata o ideal isonômico e sem indicações dos meios necessários à sua concreção, como também não depende do fato de sujeitar-se esse regime de igualdade formal à tutela de órgãos de controle da legalidade, em particular aqueles do Poder Judiciário, com competência para invalidar os atos do poder público acaso conflitantes com tal regime igualitário sem conteúdo determinado.”11

Tudo porque, no contexto das estatísticas sociais e econômicas – que é o que verdadeiramente importa nesse campo de questões – a persistência nas generalizações legislativas e no princípio da isonomia puramente formal – do tipo “todos são iguais perante a lei”, sem a exigência de condições de igualdade material efetivas e palpáveis, não propicia evidentemente a emancipação social e política dos grupos humanos discriminados e excluídos do progresso social e econômico. Bem por isso, o regime de cotas raciais enfrenta o formalismo jurídico que permeia o mito cínico da democracia racial no Brasil e que só faz reproduzir e aprofundar os preconceitos racistas enquistados historicamente no tecido social.

Como bem adverte Celso Lafer12, não é exato que – “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” – conforme proclama o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, na esteira da Declaração da Virgínia, no período da pré-independência nos Estados Unidos da América, de 1776 (art. 1º), e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela revolução francesa em 1789 (art. 1º). Em verdade, como de minha parte tenho apregoado em sede doutrinária – “nós não nascemos iguais em direitos e dignidade humana. Nós nos tornamos iguais ou podemos nos tornar mais iguais como membros de uma coletividade em virtude de lutas e conquistas redentoras e sem tréguas que assinalam a afirmação dos direitos fundamentais, não apenas no plano da sua enunciação semântica, mas sobretudo no plano da sua efetividade social e material. As isonomias, que as constituições pós-modernas cada vez mais especificam em variados contextos das relações humanas (sexo, cor, raça, idade, origem nacional, trabalho, escolaridade, filiação, fortuna, investidura em cargo público, contribuintes de tributos etc.), foram conquistadas nas diferenças, no confronto dos contrastes e nos embates coletivos de homens e mulheres singulares. Assim foi com os negros egressos da escravidão, assim foi com a mulher em face da cultura machista, assim foi com a luta dos trabalhadores para a afirmação dos sindicatos, assim foi com as minorias étnicas e religiosas que desfraldaram as bandeiras da liberdade e da emancipação enquanto grupos sociais, e assim tem sido e continua ser com os homossexuais e todo o grupo social LGBT+”.13

Especialmente no contexto das discriminações raciais, vale trazer à colação a lição memorável do sociólogo, jornalista e Senador Abdias Nascimento, meu saudoso amigo e companheiro no governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, com quem tive a honra de colaborar para a implantação da primeira Secretaria Extraordinária de Estado de Defesa e de Promoção das populações negras em nosso país. Vejam o que sustenta o notável Abdias Nascimento, que já teve seu nome indicado para o prêmio Nobel da Paz em razão da obra humanitária e de igualdade racial que nos legou: “A ação afirmativa pelo sistema de cotas consiste em um instrumento ou conjunto de instrumentos utilizados para promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios, onde se busca, através da prevenção e do processo educativo edificar uma sociedade inclusiva, aberta à participação igualitária de todos os cidadãos. Os propósitos dessa política de inclusão racial seriam, em síntese: 1) aumentar a participação de pessoas qualificadas, pertencentes a segmentos historicamente discriminados, em todos os níveis e áreas do mercado de trabalho, ampliando as oportunidades de serem contratadas e promovidas; 2) ampliar as oportunidades educacionais dessas pessoas, particularmente no que se refere à educação superior, expandir seus horizontes e envolvê-las em áreas profissionais nas quais tradicionalmente não têm sido representadas; 3) garantir às empresas de propriedade de pessoas desses grupos discriminados oportunidades de estabelecer contratos com o governo, em âmbito federal, estadual e municipal, dos quais de outro modo estariam excluídas”.14

Em apertada síntese: busca-se com as ações afirmativas e o sistema de cotas raciais, como também de cotas de gênero no contexto da igualdade entre os sexos, a promoção do princípio constitucional da diversidade e do pluralismo, de maneira a induzir e impulsionar transformações na paisagem social e econômica e, com isto, eliminar os chamados efeitos persistentes no tempo presente gerados pelas discriminações do passado escravagista e machista.

Os negros e pardos representam 54% da população brasileira, mas são subrepresentados no mercado de trabalho, nas universidades, na escolaridade em geral e no serviço público. Para se ter uma ideia, na carreira diplomática junto ao Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores, apenas 6% são negros e pardos. Nos Poderes da República, no Legislativo, no Judiciário e no Executivo em geral não é muito diferente. A bem dizer, quanto mais alto os postos na Administração Pública e a investidura nos cargos de governo menos negros e pardos se vêm.

Com bem expõe de forma admirável o pensador das questões da negritude Milton Santos, há que se perguntar o significa ser negro no Brasil hoje: “trata-se na realidade, de uma forma de apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.”15

Mas, para vergonha nossa, ser negro no Brasil é engrossar a clientela preferencial do sistema carcerário e a reserva de massas humanas massacradas por um capitalismo excludente, branco caucasiano e elitista. Por isso, as populações afro-brasileiras permanecem empilhadas e degradadas nos morros, nas favelas, nos alagados, às margens das chamadas “valas negras” (“et pour cause”) e sob o jugo dos grupos de extermínio, das milícias, da violência policial e das balas perdidas que nada têm de perdidas, mas que são dirigidas contra as comunidades negras do lúmpen social por políticas de segurança pública conluiadas com o preconceito racista. Pela omissão e cumplicidade do aparelho de Estado no Brasil, a política, embora não declarada, de racismo estrutural investe no monstruoso projeto de extermínio e de matança de crianças, de jovens e de homens e mulheres negras, além de indígenas, nas cidades e nos campos. Sobretudo os jovens negros são as maiores vítimas de homicídio no país. Como ilustra a Plataforma Juventude, Educação e Trabalho, há no Brasil 47 milhões de jovens, ou seja, de brasileiros entre 15 e 29 anos. A taxa de homicídio de jovens no Brasil é mais do que o dobro daquela para a população em geral. Apenas em 2018, foram mortos 60 a cada grupo de 100 mil jovens. A taxa aumenta assustadoramente entre os jovens do sexo masculino (112,4) e entre os jovens negros (98,5), que formam a maior clientela de mortes violentas. É justamente sobre o grupo mais vulnerável – de pobres e negros, de baixa renda e sem escolaridade básica – que recai a violência oficial e das milícias organizadas.16 Há séculos a sociedade brasileira é conivente com a penalização da pobreza. E a pobreza tem cor em nosso país. Esse período de pandemia da Covid 19 que estamos a viver serviu para revelar mediante estatísticas inquestionáveis a face aguda da desigualdade social e racial. O segmento negro e pardo da população foi o mais brutalmente atingido pela epidemia da Covid 19, uma vez que em pleno século 21 essa grande parcela da população brasileira não tem acesso aos serviços básicos de saúde, moradia digna, higiene, alimentação, água potável e saneamento.

Gostaria de concluir trazendo ao nosso exame de consciência o mau exemplo da nossa própria OAB, a nossa Casa dos Advogados, presumidamente uma casa de abolição de privilégios, uma casa da democracia, da justiça e da igualdade entre todas e todos. Basta ver que, ainda hoje, aqui entre nós no Conselho Federal da OAB, na atual gestão 2019-2021, só temos um negro dentre 81 Conselheiros Federais: o eminente e estimado colega André Luiz de Souza Costa, que engrandece a bancada do Ceará. Não por coincidência, André Luiz é o autor isolado da proposição de adoção da cota racial no sistema da OAB, em boa hora aprovado, não sem acirrado debate, pelo colegiado maior da advocacia em nosso país.

É triste dizer reconhecer essa ultrajante evidência, mas é a pura e inconteste verdade. Precisamos urgentemente mudar essa situação para nos credenciarmos perante os valores humanistas e igualitários que gostamos de proclamar e que nos impõe o art. 44, I, do nosso estatuto, a Lei 8.906/94, ao dispor que cumpre à OAB “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.

O Brasil e os brasileiros têm um encontro marcado com a negritude e com nossas raízes africanas. Não tenhamos medo dessa preciosa aliança histórica e cultural. Tenhamos orgulho e compromisso com ela. Nosso país viveu e ainda vive as sequelas da tragédia da escravidão. Como disse o saudoso Hélio Peregrino na obra “A burrice do demônio” (Editora Rocco, 1988) – “olhar nos olhos da tragédia é enfrentá-la”. Não fujamos a esse enfrentamento, que é condição para construirmos juntos, livres de toda sorte de preconceitos, uma sociedade de igualdade racial, de igualdade de gênero, verdadeiramente inclusiva, mais justa, mais democrática e mais fraterna, como determina a Constituição democrática de 1988.


1 Trata-se de palestra proferida na Audiência Pública promovida em 3 de novembro de 2020 pela Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do Conselho Federal da OAB ao ensejo da abertura do Mês da Consciência Negra: novembro negro 2020 no sistema OAB.

2 Nesse sentido, dispõe o art. 63 do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/94): A eleição dos membros de todos os órgãos da OAB será realizada na segunda quinzena do mês de novembro, do último ano do mandato, mediante cédula única e votação direta dos advogados regularmente inscritos.

3 Vale registrar que a redação do art. 16 da Constituição Federal adveio da Emenda Constitucional nº 4, de 1993.

4 Cf. MENDES,Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 5ª edição revista e atualizada, São Paulo:Ed. Saraiva, 2010, pág. 162.

5 Extraído do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello na ADI nº 3345 proposta pelo Partido Progressista e pelo Partido Democrático Trabalhista, em 25 de agosto de 2005.

6 FEIJÃO, Fabrício Souza e ARAGÃO, Hênio de Oliveira, no artigo O princípio constitucional da anualidade aplicado ao Poder Regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral”, www.faculdade.flucianofeijao.com.br

7 O parecer em comento pode ser obtido no site do Conselho Federal da OAB.

8 Idem. Cf. o site do CFOAB.

9 Neste caso, a medida cautelar do Ministro Ricardo Lewandowski, depois referendada pelo Plenário do STF, reformou a resposta do Tribunal Superior Eleitoral dada à Consulta nº 600306-47, que, por apertada maioria de 4 X 3, diferiu para o ano de 2022 a aplicação dos critérios para garantir financiamento eleitoral e tempo de propaganda aos candidatos negros e negras, com supedâneo no princípio da anualidade eleitoral inscrito no art. 16 da Constituição Federal.

10 Cf. SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto, A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais – ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário”, Editora Gen/Forense, Rio de Janeiro, 2ª edição, no capítulo VI – a nova dimensão da igualdade, item 7 – a igualdade racial, págs. 420 e segs.

11 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O princípio de isonomia e a igualdade da mulher no Direito Constitucional. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1983, págs. 41 e 43.

12 Em “A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt”, São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1991, p. 150.

13 Cf. SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto, “Direito Constitucional e Regulatório – ensaios e pareceres – volume II”, Editora Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2020, ps. 177-178, no artigo intitulado “As relações homoafetivas na Constituição e o Estatuto da Diversidade Sexual”.

14 Em discurso proferido no Senado Federal em 13 de maio de 1998, transcrito no meu livro A constituição Aberta e os Direitos Fundamentais, acima citado, às págs. 363.

15 Cf. SANTOS, Milton, “Ser negro no Brasil hoje”, artigo publicado na Folha de São Paulo, caderno Mais, edição de domingo, 7 de maio de 2000, pp. 15 e 16.

16 Cf. o site pjet.frm.org.br, organizado pela Fundação Roberto Marinho com o apoio do Itaú Educação e Trabalho.

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