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O princípio da vedação ao retrocesso

O princípio da vedação ao retrocesso

Por Manuellita Hermes, Cristina Maria Gama Neves Da Silva, Nathália Mariel F. De S. Pereira e Ana Beatriz Robalinho

A necessária aplicação quanto ao financiamento de candidaturas de mulheres e pessoas negras

Apesar do esforço, materializado em resultados concretos do Supremo Tribunal Federal (STF)[1] e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)[2] na defesa dos direitos de minorias políticas, a grande maioria dos partidos tem buscado manobras para não efetivar o princípio da igualdade no âmbito eleitoral e político. Da mesma forma que os partidos buscaram mecanismos – como as candidaturas fictícias – para burlar a efetividade de candidatura feminina, atualmente se valem incansavelmente de formas de não cumprir a lei eleitoral quanto ao repasse do devido e proporcional percentual do fundo de campanha para candidaturas femininas e de pessoas negras.

Em 2015 foi aprovada a Lei 13.165/2015, que reduziu a multa devida nos casos em que o partido não investiu o valor mínimo na criação ou manutenção de programas de incentivo à participação das mulheres na política. Em 2022 foi promulgada a Emenda Constitucional 117/2022, que em seus artigos 2º e 3º suspendeu as sanções para os partidos que não destinaram os valores mínimos em razão do sexo e raça de seus candidatos em eleições ocorridas anteriormente a promulgação da emenda. Já a PEC 9/2023 tem o objetivo de anistiar novamente os partidos também dos ilícitos cometidos quanto aos repasses do FEFC nas eleições de 2022.

Contra os artigos 2º e 3º da EC 117/2022, a Rede Sustentabilidade apresentou a ADI 7.419, e contra a tramitação da PEC 9/2023 o grupo Mulheres do Brasil propôs a ADPF 1.069. Em ambas as ações foi suscitado o princípio da vedação ao retrocesso.

O princípio da vedação ao retrocesso social funciona como um limite à reforma, onde se busca proteger a sociedade e os grupos vitimizados contra a superveniência de lei que pretenda atingir, negativamente, o direito social já conquistado em sede material legislativa. O princípio apresenta, ainda, uma vertente voltada para o judiciário, onde a interpretação conferida à norma jurídica, em seus aspectos de validade e existência, deve igualmente entender pela vedação ao retrocesso, buscando aquela leitura que fortaleça direitos, e não os diminua ou enfraqueça.

Nesse sentido, o professor Ingo Wolfgang Sarlet entende que o princípio tem como bases a dignidade da pessoa humana, os princípios da confiança, da segurança jurídica, da máxima efetividade das normas constitucionais, e o Estado Social, entre outros fundamentos axiológicos[3]. Não obstante o princípio da vedação do retrocesso não ser expresso, Sarlet defende que este decorre do sistema jurídico constitucional, de modo que se há um direito já realizado por uma norma constitucional, este restará incorporado ao patrimônio jurídico e, dessa forma, não poderá ser suprimido por outra norma. Assim, o princípio deve ser aplicado como uma imposição ao legislador de não desregulamentar ou flexibilizar os direitos sociais[4].

O mesmo já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em algumas ocasiões, como no ARE 639.337, relator ministro Celso de Mello, onde se assentou que “o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas também se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados[5].

Considerando todo avanço normativo, jurisprudencial e representativo que a cotas de gênero e raça e a distribuição proporcional de fundos de campanha promoveram, a anistia das sanções impostas quanto ao repasse ilícito deve encontrar óbice na proteção da proibição do retrocesso. Isso porque a lógica do princípio é justamente o respeito a um limiar mínimo, cujo estabelecimento foi da escolha do próprio legislador.

De fato, John Jeffries e Daryl Levinson observam que o princípio da vedação do retrocesso não representa uma proteção absoluta, mas justamente uma medida de coerência com um patamar estabelecido previamente, com o qual a sociedade passa a contar; não é uma cura, portanto, para todos os males existentes, mas evita que eles se aprofundem[6]. No mesmo sentido, J.J. Gomes Canotilho afirma que a “proibição do retrocesso nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas […], mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos[7], sob pena de afronta aos postulados da legítima confiança e da segurança dos cidadãos.

Houve e há uma reação do sistema político eleitoral na perpetuação das desigualdades estruturais no sistema representativo, sendo latente o não comprometimento dos partidos políticos com candidatura de mulheres e pessoas negras, movimento encorajado pela série de sequenciais medidas legislativas de perdão pelos seus descumprimentos.

Por tal razão, mais uma vez é necessária uma resposta enérgica e eficiente do judiciário, para que se evite que a cada nova legislatura haja nova emenda à Constituição, com a intenção de anistiar partidos políticos que usam indevidamente verba pública, qual seja, o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).

O que se discute é a distribuição de recursos públicos (financeiros e direito de arena) que, portanto, deve respeitar em sua execução os fundamentos constitucionais, previstos no artigo 1º da Constituição Federal, assegurando a plena cidadania, a dignidade das pessoas e o pluralismo político. Deve-se, ademais, visar sempre atingir os objetivos fundamentais da Democracia brasileira estabelecidos no artigo 3º de nossa Carta Magna, qual seja, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e marginalização, a redução das desigualdades sociais, para promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para além de todos os fundamentos que demonstram a compatibilidade das iniciativas com a Constituição, é certo que o legislador já tomou a decisão de promovê-las. A correta interpretação da norma, em face do princípio constitucional da vedação ao retrocesso, é aquela que dará concretude às previsões legislativas de inclusão de mulheres e negros na política como conquista histórica a ser garantida. Completamente aplicável ao contexto brasileiro a reflexão de Angela Davis tecida sobre a realidade estadunidense: “(…) a luta negra serve, de muitas maneiras, como um emblema da luta pela liberdade. Ela é emblemática de lutas mais amplas pela liberdade. Por isso, na esfera da política negra, eu também teria de incluir as lutas das questões de gênero, as lutas contra a homofobia, as lutas contra políticas repressivas anti-imigração”[8].

A redemocratização que caracterizou a América Latina na década de 1980 encetou um período paulatino de transição democrática, que demandou a elaboração de novas Cartas Constitucionais e formação de instituições fortes que garantissem os direitos humanos. A incorporação de tratados internacionais também foi importante como meio de internalização de novos marcos jurídicos como reforço democrático e humanitário.

No Brasil, porém, constata-se hoje a tentativa de desconstrução de vitórias relativas à igualdade material, à diversidade e ao pluralismo, como uma nova estratégia discriminatória. Neste momento, o bom funcionamento dos sistemas judiciais nacionais é essencial para uma eficaz proteção aos direitos de minorias políticas. À luz da subsidiariedade, os mecanismos de proteção do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos são também uma barreira ao solapamento das políticas públicas orientadas à efetivação dos direitos humanos, em garantia do progressivo avanço e da proibição do retrocesso social.

Se, como afirma Jürgen Habermas, um espaço público excludente não é apenas incompleto, mas sequer pode ser considerado espaço público[9], a participação de mulheres e pessoas negras nos espaços de decisão é indispensável para a configuração da democracia.


[1] Vide ADI 5617

[2] Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000 TSE e Consulta 0600306-47.2019.6.00.0000 TSE

[3] “Assim, a proibição de retrocesso assume (como parece ter sido suficientemente fundamentado) feições de verdadeiro princípio constitucional fundamental implícito, que pode ser reconduzido tanto ao princípio do Estado de Direito (no âmbito da proteção da confiança e da estabilidade das relações jurídicas inerentes à segurança jurídica), quanto ao princípio do Estado Social, na condição de garantia da manutenção dos graus mínimos de segurança social alcançados, sendo, de resto, corolário da máxima eficácia e efetividade das normas de direitos fundamentais sociais e do direito à segurança jurídica, assim como da própria dignidade da pessoa humana”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 407.

[4] “Nessa ordem de ideias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou uma garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na Constituição. O que se veda é o ataque à efetividade da norma que foi alcançada a partir da sua regulamentação. Assim, por exemplo, se o legislador infraconstitucional deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito que dependia de sua intermediação, não poderá simplesmente revogar o ato legislativo, fazendo a situação voltar ao estado de omissão legislativa anterior”. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 150.

[5] ARE 639.337, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. em 23/08/2011.

[6] JEFFRIES, John; LEVINSON, Daryl. The Non-Retrogression Principle in Constitutional Law. California Law Review, vol. 86, n. 6, 1998, pp.1211 e ss.

[7] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 320/321, item n. 3, 1998, Almedina

[8] DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 48-49.

[9] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 [1961]. P. 107

Artigo publicado originalmente no Jota.

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