Por Luiz Carlos Rocha
Com a elegibilidade de Lula a Globo encetou a fala de que o país está mergulhado numa polarização maldita e da necessidade de uma 3ª via, cuja maior manipulação consiste em apresentar ex-presidente como um extremista radical
O pacto da mídia com a Lava Jato
É preciso anotar desde logo que, para o bem ou para o mal, a chamada grande mídia, particularmente o jornalismo da Rede Globo, tem sido um protagonista sempre relevante na cena política, em defesa dos seus interesses e dos seus patronos, de modo que é legítimo especular sobre o que fará em 2022.
A velocidade com que a realidade político-eleitoral tem se transformado no Brasil é impressionante. De 2014 a 2021, em apenas 7 anos, o país viveu o movimento de uma montanha russa. Em 2014 Dilma é reeleita, em 2015 Cunha é eleito Presidente da Câmara, em 2016 Dilma é cassada, Temer assume e impõe o Teto de Gastos, um programa econômico que traiu o que o elegeu, o PT sofre uma dura derrota nas eleições, Cunha foi afastado da Presidência da Câmara, cassado e preso, em 2017 Rocha Loures foi preso, em 2018 Lula foi preso, Bolsonaro eleito, o PT fez a maior bancada federal, elegeu o maior número de governadores e Haddad teve 47 milhões de votos no segundo turno e o PSDB sofreu dura derrota, em 2019 Moro torna-se ministro, Temer é preso e Lula solto, em 2020 Moro é demitido e a pandemia interdita o mundo, em 2021 os processos de Lula são anulados e ele arranca para liderar todas as pesquisas na sucessão de 2022. Nesse período a Lava Jato vai do módulo “bendita Geni” ao “maldita Geni”, desmoralizada pelas revelações da Vaza Jato e da operação Sppofing.
Importa anotar que a Lava Jato, comandada por Moro, só acumulou energia capaz de submeter os poderes da República, ao ponto de serem forçados a validar ou se omitir por completo diante das violações das garantias individuais nela operadas, em razão do notório pacto que firmou com a grande mídia, especialmente o jornalismo da Globo.
Assim, por força desse pacto a mídia deu ares de normalidade a todas essas violações das garantias individuais praticadas pela Lava Jato contra os seus investigados, especialmente Lula, seu alvo preferencial, como forma de constranger os poderes perante a opinião pública.
Coube à mídia naturalizar a quebra criminosa do sigilo telefônico da Presidência da República por um juiz de primeiro grau (sob o obsceno argumento de que a opinião pública tinha o direito de ouvir a conversa), o levantamento do sigilo do depoimento de Palocci pelo mesmo juiz às vésperas do segundo turno em 2018 (sob obsceno argumento de que a opinião pública tinha o direito de conhecer o seu conteúdo para o pleito eleitoral) e também a alteração da Constituição para viabilizar prisões após as condenações em segundo grau e, como consequência, a prisão de Lula e a censura imposta aos pedidos de Monica Bergamo e diversos outros jornalistas para entrevista-lo em seu cativeiro (desta feita sob o obsceno argumento de que interferiria na opinião pública e nas eleições).
A mesma mídia naturalizou a ida de Moro para o Ministério da Justiça do governo Bolsonaro, cuja eleição foi também resultado direto de todas as suas manobras contra o PT, Lula e Haddad.
Em troca, a grande mídia se fartou nos vazamentos criminosos de dados sigilosos, na antecipação de informação sobre operações de conduções coercitivas, buscas e apreensões e prisões, tudo produzido de modo espetaculoso e com o objetivo de antecipar um estado de culpa do investigado na opinião pública, um instrumento da Lava Jato para atingir seus objetivos, nem sempre lícitos.
Os patronos da grande mídia, por seu turno, lograram sucesso no objetivo de afastar o PT e colocar em curso um programa econômico liberal, que traiu a vontade que o eleitor expressou inequivocamente em 2014.
A necessidade da relação incestuosa do Sistema de justiça com a mídia no combate à corrupção era um objetivo do juiz Moro, revelado em textos nos quais cita o exemplo da operação Mani Pulite.
Esse pacto explica o comportamento do jornalismo da Rede Globo de não ter informado as inúmeras e importantes visitas que Lula recebeu durante o seu cativeiro em Curitiba, dentre elas as de figuras como Noan Chonsky, Martin Schulz, Maximo D´Lema, Jean-Luc Mélenchon, Alberto Fernandez, José Mujica, Eduardo Duhalde, Cuauhtémoc Cárdenas, Roberto Gualtieri, Boaventura Souza Santos, Kailash Satyarthi. Adolfo Peres Esquivel, Juan Carlos Monedero, Domenico De Masi, Dany Glover, para ficar só nas personalidades internacionais, e que denunciaram a prisão política.
A aposta no antipetismo e na anticorrupção
O pacto da grande mídia na Lava Jato a arrastou para o apoio ao antipetismo e ao discurso anticorrupção, que resultou na eleição de Bolsonaro em 2018. As desconfianças em relação a ele foram aplacadas pelo apreço que os patronos mídia tinham nas promessas neoliberais do posto Ipiranga, que atendia plenamente aqueles eternos interesses imediatistas.
Como nas outras vezes em que apostou no discurso anticorrupção, agora a grande mídia também não se preocupou que, à espreita do desmonte da classe política operado pelo “combate à corrupção”, havia uma extrema direita saudosa da ditadura militar, que conspirava nos quartéis, oportunista, ressentida, golpista, raivosa, e uma direita parlamentar e empresarial fisiológicas, ávidas para abocanhar nacos do orçamento da União e solapar os direitos do mundo do trabalho, sociais e do meio ambiente, outorgados pelo pacto constitucional de 1988.
Uma extrema direita que sonhava com o fim da polarização PSDB x PT, sobre a qual se estabilizou o sistema político e eleitoral a partir de 1994, pronta para se apropriar do discurso anticorrupção, da antipolítica, do resultado das estranhas manifestações de 2013, do desarranjo e da fragilização que a Lava Jato produziu na cena político-partidário, do fracasso flagrante do projeto econômico do governo Temer, para sair da escuridão a que foi relegada pela democracia.
Não era só uma direita antipetista, mas aquela extrema direita preconceituosa, rancorosa, com ódio da defesa do meio ambiente, dos índios, dos quilombolas, do combate à desigualdade social, da inclusão dos negros, domésticas e de trabalhadores pobres em ambientes antes exclusivos da classe média, do combate à violência contra as mulheres, dos movimentos sociais, sindical, dos Sem Terra e Sem Teto, da pauta de costumes dos movimentos LGBTs e da rebeldia da juventude, sustentadas por uma liberdade de expressão nunca vista, fruto dos novos tempos da democracia à brasileira.
A grande mídia não teve a menor preocupação que seus movimentos pudessem levar o país para a tragédia do suicídio de Getúlio, que a queda de Jango pudesse se converter numa trágica ditadura assassina de mais de 20 anos, tampouco com as consequências da eleição de despreparados como Collor e Bolsonaro, e tampouco se preocupa com as consequências da aventura de um governo de Moro. O que interessa são seus interesses imediatos de sempre.
A tolerância com Bolsonaro e Moro
Apesar do choque que as falas e atitudes do novo mandatário provocaram na parte mais liberal e democrática da grande mídia, a decepção com o novo governo tardou. Houve um longo período em que as presenças de Moro e Guedes no governo, a manutenção do Teto de Gastos e as promessas de privatizações o tornaram tolerável para os patronos dessa mídia.
Com isso, as críticas só começaram a surgir com mais intensidade depois da saída de Moro do governo, do crescente desastre do governo no enfrentamento da pandemia e quando a tolerância com Guedes foi sendo solapada com volume crescente de negócios que Bolsonaro foi pactuando com o Centrão e contra o Teto de Gastos.
No caso de Moro, só quando as publicações da Vaza Jato no Intercept e da operação Spoofing, que expuseram as entranhas da operação e toda a sorte de abusos e ilegalidades nela praticados pelo juiz e seus comandados, tornaram-se irrespondíveis e chocaram o país é que parte da grande mídia assumiu uma posição de crítica aberta e revisionista.
A força do pacto Moro-Globo
Mas nem isso desvaneceu a força do pacto de parte da grande mídia com a Lava Jato, pois a partir dessa nova cena o jornalismo da Globo insistiu, desavergonhadamente, na absurda versão de que ao anular os processos de Lula por suspeição e incompetência de Moro, o STF não o inocentou. Como se antes do trânsito em julgado não fosse presumida a inocência de todo e qualquer acusado, como se a singela consequência da anulação não fosse justamente a permanência do acusado na situação do statu quo ante: inocente! Não reconhecer o óbvio, nesse caso, é só pura desonestidade intelectual: é o pacto!
Mas não foi só isso. Com a elegibilidade de Lula o jornalismo da Globo encetou a fala de que o país está mergulhado numa polarização maldita e da necessidade de uma terceira via, cuja maior manipulação consiste em apresentar ex-presidente como um extremista radical, mesmo tendo exercido dois mandatos presidenciais de intenso diálogo e completa pacificação da sociedade.
É sob o manto desse pacto, com exceção de uns poucos colunistas, que a pré-candidatura de Moro é recebida com indisfarçável regozijo: finalmente a terceira via encontrou um nome supostamente competitivo.
É um pacto que produz um segundo perigo real para nossa jovem democracia. Como se não bastasse Bolsonaro, agora há o risco Moro. O pacto imporá muitos minutos no Jornal Nacional, no Fantástico, capas das revistas, menções nas primeiras páginas e páginas inteiras para um candidato que sequer tem um esboço de projeto para o país, inexperiente e sem nenhum pensamento econômico relevante, um tratamento que nenhum dos outros pré-candidatos no mesmo patamar tem, ainda que sua entrada na disputa não tenha alterado em nada os números que as pesquisas dão para Bolsonaro e Lula, desde que este se tornou elegível.
Apesar de nada indicar que Moro tenha sorte diversa do que já tiveram Brizola, Garotinho, Marina e o próprio Ciro Gomes, que se aventuraram como terceira via, apesar do lançamento do seu livro ter reunido apenas beatos em locais fechados e resultado numa tentativa fracassada de requentar o discurso anticorrupção, que, segundo as pesquisas, não atinge o interesse de 10% dos eleitores, tem sido tratado como se suas evidentes fragilidades não tivessem a menor importância.
Moro é um novo projeto autoritário no qual a ameaça ao pacto constitucional de 1988 persistirá, sob o discurso autoritário e demagógico do combate à corrupção. A Constituição seguirá sendo agredida, não só nos direitos e garantias individuais, mas nos direitos sociais que os trabalhadores e o povo pobre conquistaram até aqui. Na economia Moro é uma variante de Bolsonaro, na política e no Direito um retrocesso udenista e golpista tosco.
O fato de as pesquisas atribuírem a Bolsonaro e Moro percentuais que, somados no segundo turno, resultam em mais de 30% é mais que suficiente para entender que a situação é grave e recomenda a cautela do velho marinheiro no nevoeiro.
Esse pacto de parte da grande mídia com Moro precisa ser exposto, denunciado e submetido a duro conflito, pois relativiza o viés autoritário de Moro, relativiza que a corrupção só pode ser combatida com racionalidade, obediência rigorosa às formas, sem as quais o Direito se transforma num exercício tosco de subjetivismo, manipulação e demagogia política, como revelaram o Intecept e a operação Sppofing.
É preciso denunciar que os patronos da mídia, a elite econômica que nunca conseguiu esboçar um projeto de país porque vive de improviso em improviso e que estejam mais à caráter dos seus interesses imediatos, vai apostar em Moro porque não tem preocupação com o que há na consciência de um magistrado que aceita, sem conflitos aparentes, sem nenhum constrangimento, conspirar com a acusação para prejudicar o réu, reveladora de um desprezo incomum pela natureza contra majoritária da função, que é a alma da magistratura democrática. Um togado que não se constrangeu, na função e em pleno processo eleitoral, em aceitar tratativas para ir compor o governo, cuja eleição foi influenciada por suas decisões. Que deixou o governo para prestar serviços numa empresa que se beneficia largamente da desgraça das empresas prejudicadas por suas decisões. Um magistrado que produziu violações das garantias individuais num nível impensável de autoritarismo. Essa mídia e seus patronos não se perguntarão sobre o que fará na Presidência da República alguém com essa flexibilidade de caráter e desapego com a democracia.
Some-se a isso que o jornalismo da Globo ainda reluta em enfrentar o tema da destruição econômica que o modus operandi da Lava Jato produziu no país e precisa ser chamado à responsabilidade pela sua colaboração.
Será necessário um movimento de reconstrução
Diante desse pacto, que representa um risco real à democracia, resta a Lula ir na direção oposta ao discurso da tal polarização, de que só a terceira via salva o Brasil. A sua aproximação com o PSDB de FHC, Alckmin, Aloysio Nunes, Arthur Virgílio, José Aníbal, com figuras como Rodrigo Maia, Kassab, Eduardo Paes, Alexandre Kalil e tantas outras figuras de centro e centro direita, deixa claro que não se trata só de um movimento de preservação da democracia. Trata-se de um movimento que terá a tarefa de reconstruir o que foi destruído pela Lava Jato, pelos erros de Temer e pela pilhagem de Bolsonaro. Será preciso um pacto capaz de ir além da manutenção das garantias individuais. Um pacto que garanta governabilidade para restaurar os direitos sociais e do meio ambiente em quantidade e qualidade sem precedentes na história do país e ainda os imunizar contra novos retrocessos. Não basta, portanto, só ganhar a eleição. É preciso um pacto para os próximos 30 anos, com começo, meio e cujo fim seja a hegemonia dos setores democráticos da sociedade. O começo requer uma aliança ampla, de reconstrução nacional, que comprometa todos os setores progressistas da sociedade e dispostos a concretizar o artigo 3º da Constituição Federal: erradicar firmemente a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos.
A cena não está para projetos ideológicos à esquerda, que só poderão ser sonhados com a superação do processo de destruição a que foi submetido o país. Só Brasil reconstruído poderá oferecer as bases para os bons conflitos produzirem mais avanços.
O consolo é que, desta feita, a esquerda parte de uma plataforma bem diferente daquela que deu a largada para o pacto constitucional de 1988. Ulysses entendeu que, com o colapso das Diretas Já em 1984, era necessário abrir o caminho para que Tancredo pactuasse a outra alternativa de transição para a democracia. Naquela conjuntura a esquerda foi coadjuvante dos liberais progressistas e democratas, tanto na ida ao Colégio Eleitoral como no processo constituinte. Agora a esquerda é protagonista pleno e pode impor ao pacto de reconstrução o viés progressista que a realidade está a impor. Essa é uma conquista inegavelmente virtuosa dos tempos do PT. Nessa posição de protagonismo a esquerda não deve temer pactuar para restaurar, pois não deixará de ter o protagonismo nas etapas seguintes, assegurado principalmente pela força do PT e da liderança de Lula.
Nessa etapa, o jornalismo da Globo deve ser constrangido e exposto diariamente com a realidade de que Moro é só mais uma aventura irresponsável contra a democracia, como em 1964, como Collor e Bolsonaro. Deve ser lembrado sistematicamente que a democracia é um processo no qual os retrocessos estão sempre à espreita e que, como bem lembra Boaventura, no hemisfério Norte os conflitos se resolvem com regulação, enquanto no Sul os mesmos conflitos são resolvidos com violência. Deve ser dito que a sua colaboração com Moro no uso demagógico do combate à corrupção resultou em autoritarismo judicial, violência, fracasso, recrudescimento da própria corrupção e no estiolamento da democracia.
Artigo publicado originalmente na Revista Fórum.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *