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O Sereníssimo Direito! Quando Nebrask vira Caneca!

O Sereníssimo Direito! Quando Nebrask vira Caneca!

1. O Sereníssimo conceito de Direito
O Direito não é exatamente o que parece ser, dizem. O Direito é aquilo que quem tem poder diz que é. Machado de Assis já sabia disso. Teimoso, tenho recaídas. Não deveria mais discutir esse assunto.

Se eu fosse buscar na literatura um modo de tentar metaforizar o mundo jurídico, convocaria o nosso Flaubert, Machado de Assis, com seu conto A Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”. Eis a história.

O Cônego ofereceu às aranhas falantes um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos.

O inusitado ocorreu quando da eleição de um magistrado: “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra. Mas as cinco testemunhas resolveram o problema.

Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, um bom metafísico, que apresentou a sua tese:

Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Aí está a prova: a primeira afirmação, mais as silabas “ca” adicionadas às duas “Cane, dá o nome Caneca.”

Perfeito. Quem dá as palavras o sentido? Isso já estava lá no Crátilo, na discussão Da Justeza dos Nomes. Vejo o cavalo, mas não vejo a cavalidade, dizia Adso de Melk para o mestre Guilherme de Baskerville, em O Nome da Rosa. Pois é. Como se dão nome às coisas? E a interpretação da lei tem limites? Machado brinca bem com isso, pois não?

2. Quem dá o sentido às palavras da lei?
Machado, sempre genial, já havia sacado o realismo jurídico antes que o realismo fosse realismo. O que é direito? Ora, qualquer coisa — desde que qualquer coisa seja dita por aquele que pode dizer qualquer coisa. Séculos e séculos de teoria do direito, a virada ontológico-linguística, toda uma tradição de filosofia ocidental… para nada. Porque o sujeito põe o direito como bem entende e diz que aquilo é direito. E a doutrina vai e repete. E está dado o círculo.

X vira y se o responsável por dizer x quer dizer y. E repetimos em nossos compêndios que Nebrask afinal era Caneca. (Até que sobrevenha a tese dizendo que Nebrask era mesmo Nebraska, até que venha uma súmula dizendo que Nebraska agora é Caneca.) E assim vamos.

Alguém me passa o açúcar?

Pode-se, todavia, chamar de o açúcar de sal?

Depende. Qual é o seu poder para tal?

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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