Por Nabil Bonduki
País perdeu na virada do ano dois nomes incansáveis no combate às injustiças sociais
Falar em redução das desigualdades virou chique. Até os economistas neoliberais e a elite branca, a maior beneficiária do modelo excludente da sociedade brasileira, parecem ter incorporado essa agenda. O que é ótimo, se não for apenas um discurso da boca para fora.
Mas a luta contra a desigualdade é antiga e tem sido protagonizada por pessoas que há décadas trabalham de forma incansável e, muitas vezes, anônima para enfrentar as injustiças em um dos países mais desiguais do mundo. Nessa virada de ano, o Brasil perdeu duas delas: o Padre Ticão e o advogado e gestor público Diogo Sant’Ana.
Ticão e Diogo, de diferentes gerações, atuaram de forma muito diversa, um liderando movimentos sociais na periferia e o outro atuando como gestor em governos comprometidos com a questão social. Mas ambos trabalhavam pela mesma causa.
Quando Diogo, negro e filho de mãe solo nasceu, em 1979, na periferia da zona sul de São Paulo, o Padre Ticão já atuava nas lutas por direitos na zona leste, onde era pároco em Ermelino Matarazzo.
Ele integrou uma geração de bispos e padres progressistas, adeptos da Teologia da Libertação, que, sob orientação de dom Paulo Evaristo Arns, fomentava a criação de Comunidade Eclesiais de Base (CEB) nas regiões de vulnerabilidade social para reivindicar direitos fundamentais, como alfabetização, vagas em escolas, atendimento de saúde, saneamento e moradia.
Só quem conhece a periferia apenas de ouvir falar acha que nada mudou nessas vilas e jardins onde as CEBs estavam organizadas. Nos anos 1970 e 1980, esses lugares eram formados por ruas de lama e casinhas autoconstruídas inacabadas, sem escola, unidades de saúde e transporte por perto.
Se hoje esses bairros têm ruas pavimentadas e equipamentos sociais (embora, estruturalmente, a urbanização continue precária), isso é fruto de uma mobilização popular que teve nas paróquias, como a Igreja São Francisco de Assis, onde Ticão atuava, um ponto de apoio fundamental.
Com o desemprego dos anos 1980, a crise da habitação se aguçou e Ticão organizou, com outras lideranças, os movimentos dos sem-terra, um em cada região da cidade. Posteriormente, esses movimentos formaram a União dos Movimentos de Moradia (UMM).
Cruzei pela primeira vez com Ticão em 1982, quando eu assessorava os movimentos de moradia, através do Laboratório de Habitação. Ele nos pediu o projeto de uma praça em frente à sua paróquia, para acolher as milhares de pessoas que reunia. Foi o começo de uma longa interlocução.
Entre 1986 e 1987, Ticão liderou uma enorme mobilização de 20 mil pessoas para ocupar dezenas de terrenos ociosos na zona leste, um processo impressionante documentado no filme “Há Lugar”. Essa ocupação fortaleceu o movimento de moradia, que teve papel fundamental na eleição de Erundina, em 1988.
Nomeado por Erundina secretário-executivo do Funaps (Fundo Municipal de Habitação Popular), convidei o Padre Ticão para integrar seu Conselho Deliberativo. Ali debatemos e aprovamos programas que inovaram a política habitacional, como o mutirão autogerido, a habitação em áreas centrais e a urbanização de favelas.
Em três anos, já tínhamos 250 projetos em andamento e 109 convênios assinados com associações comunitárias para construir milhares de moradias em mutirão. Apesar da amplitude do programa, Ticão se deu conta das limitações financeiras do município para enfrentar a questão habitacional.
Em 1991, ele pediu para se retirar do Conselho, dizendo: “A prefeitura, sozinha, já está fazendo sua parte, mas está faltando o estado e o governo federal. Precisamos de um Funaps nacional”. Estávamos no governo Collor…
Com essa ideia na cabeça, ele iniciou, junto com a UMM, uma campanha para recolher 1 milhão de assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular (o primeiro a dar entrada no Congresso Nacional) pela criação do Fundo Nacional de Moradia. Do governo do estado, arrancou o Programa Paulista de Mutirões, que viabilizou, na gestão Mario Covas, dezenas de milhares de moradias.
Ticão sabia jogar com os diferentes governantes para extrair o máximo que pudesse de cada um, em prol da região. Sua igreja virou uma “Meca” de políticos, mas ele reclamava de todos os partidos e governos, sempre apontando a necessidade de inversão das prioridades e de se investir mais na periferia. Com essa estratégia, conseguiu muito.
Da luta por moradia, Ticão avançou para uma nova agenda de direitos, voltada para levar educação superior e cultura para a zona leste. Com isso, ele passou a sensibilizar uma segunda geração de jovens da periferia.
Considerava um absurdo a zona leste não ter nenhuma universidade pública e sua luta foi decisiva para arrancar do governo do PSDB a implantação de um campus da USP em Ermelino Matarazzo e do governo do PT, o campus da Unifesp em Itaquera, em um momento de expansão das universidades federais.
Em permanente contato com o povo, Ticão estava sempre inovando na agenda social. Nos últimos anos, passou a defender e difundir a medicina tradicional, a fitoterapia e o uso medicinal da cannabis, enfrentando todo tipo de preconceito.
Até ameaças de morte sofreu quando deu espaço na igreja para o movimento Católicas Pelo Direito de Decidir, que defende o direito ao aborto. Os últimos cursos voltados para o uso da cannabis, já no período da quarentena, chegaram a reunir mais de 4.000 pessoas, em transmissão online. Seu falecimento não pode fazer essa luta retroceder.
A coragem, disposição e autonomia política do Padre Ticão, assim como sua capacidade de ampliar e renovar a agenda social, são um exemplo para os que lutam por um país mais justo. A mobilização social, com independência do Estado, é uma condição necessária para reduzir a desigualdade social no Brasil, mas insuficiente.
Sem um poder público estruturado, eficiente e com sensibilidade social, as lutas populares não conseguirão consolidar programas de Estado capazes de enfrentar os graves problemas do país. Nesse aspecto, a contribuição de profissionais e gestores públicos como Diogo Sant’Ana fazem a diferença.
Formado no início dos anos 2000, Diogo faz parte de uma geração que já encontrou estruturada no país uma agenda de lutas sociais, tecida desde a redemocratização por movimentos populares e partidos progressistas, e que teve como protagonistas figuras como o Padre Ticão, mas que requeria gestores competentes e com sensibilidade social para concretizar essa agenda.
Na Faculdade de Direito da USP, onde ingressou antes de ser instituído o sistema de cotas e a despeito das dificuldades familiares, Diogo foi uma das mais importantes lideranças do Centro Acadêmico XI de Agosto, que se tornou um celeiro de quadros técnico/políticos e teve grande protagonismo, muitas vezes de forma anônima, no grande esforço que o país promoveu até 2014 para enfrentar a questão social.
Como secretário-executivo da Secretaria Geral da Presidência, acompanhava as pautas dos movimentos sociais como um interlocutor sensível e competente para transformar as reivindicações populares em políticas públicas factíveis e juridicamente estruturadas.
Atuou no fortalecimento do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, implementando programas de estruturação de cooperativas que, além de gerarem emprego e renda, contribuem para a proteção do meio ambiente.
Sua solidariedade e generosidade, que é reconhecida por todos que acompanharam sua trajetória, foi tanta que mesmo após deixar o governo continuou a assessorar o movimento dos catadores pro bonno.
O destino levou, na virada do ano, esses dois gigantes da luta por direitos, que já tinham realizado muito, mas que ainda tinham muito a contribuir em um país cada vez mais carente de lideranças, tanto no movimento popular como na gestão pública.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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