Por Fábio Tofic Simantob e Júlio M. de Oliveira
No julgamento do RHC 163334, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que declarar ICMS mas não recolhê-lo ao Fisco configura o crime do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137, de 1990, uma espécie de apropriação indébita tributária.
Sucede que o próprio STF, ao julgar o caso, estabeleceu uma série de critérios, sem os quais a criminalização não pode ocorrer. Um desses critérios é a contumácia. Ou seja, não basta dever um, dois ou três meses para que já fique configurado o crime. É necessário ainda um dolo especial e usar o não pagamento como estratégia negocial.
O entendimento do STF, criminalizando a mera dívida de ICMS, pode servir para equilibrar o sistema penal tributário
A forma como esses critérios serão usados na prática ainda não é muito clara. Só o fato de o caso tratado no leading case ser de uma dívida de pequena monta, em que os réus eram defendidos pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, já é suficiente para colocar uma série de dúvidas sobre o real alcance de expressões como contumácia e estratégia negocial do contribuinte.
A grande questão é de que forma esse julgamento do ICMS pode acabar impactando outros impostos, cujo mero não pagamento também configura crime, como é o caso do INSS e do IR retido na fonte.
Os novos critérios estabelecidos pelo STF, como contumácia, intenção de empreender estratégia negocial, se aplicam a outros impostos ou somente ao ICMS? Ou melhor, teria o STF abrandado a criminalização do não pagamento desses outros impostos, limitando sua aplicação aos casos de evidente e manifesta vontade de se locupletar dos recursos dos impostos?
Sim, pois não faria sentido aplicar tais critérios apenas a uma modalidade de tributo, se do ponto de vista valorativo a conduta é exatamente a mesma, fere o mesmo bem jurídico, e produz o mesmo resultado. Até porque essa distinção entre tributos diretos e indiretos, do ponto de vista econômico, não se sustenta, afinal todos os tributos são considerados na formação do preço de um produto/serviço, sob pena da empresa que o produz/presta ou revende se tornar cronicamente deficitária e quebrar.
Fato é que, se o entendimento puder ser aplicado a outros casos de apropriação indébita tributária, o precedente pode acabar solucionando diversas injustiças que a atual sistemática dos crimes tributários não consegue resolver.
Afinal, continua muito difícil de defender que a criminalização do mero não pagamento não é uma reles prisão por dívida, aplicada fora das hipóteses permitidas pela Constituição Federal, que só a autoriza em casos em depositário infiel e de devedor de pensão alimentícia. Nitidamente, o devedor de tributos que não sonega a dívida, mas apenas não adimple o pagamento, é um devedor civil como qualquer outro, de modo que sua prisão pelo não pagamento passa a ser mais um fator de insegurança jurídica e um obstáculo relevante ao empreendedorismo.
Nos casos em que o não pagamento de tributos é considerado apropriação indébita tributária, a única saída para não ser condenado criminalmente é a defesa do réu conseguir mostrar que a empresa estava em completa ruína empresarial e financeira, de tal modo que não seria lícito exigir dele o pagamento dos impostos. É uma hipótese de excludente de culpabilidade.
Ocorre que a jurisprudência dos tribunais acabou criando padrão probatório tão exigente, que torna quase impossível, na prática, a demonstração dessa situação de penúria capaz de excluir o crime. O drama real então é que, em muitos casos, a ruína financeira acaba sendo coroada com a condenação penal.
Essa pecha de criminoso que se incute em meros devedores é uma violência do direito penal brasileiro que precisa ser corrigida, e o precedente do ICMS, por paradoxal que possa parecer, acaba mostrando a saída para separar o joio do trigo, ou seja, distinguir o devedor honesto, que é a maioria, daquele que usa a dívida tributária para se locupletar dos valores pertencentes ao Fisco.
A hipótese criminal, então, pela lógica desse aparente novo entendimento, ficaria restrita àquele que age com predeterminação, aquele que age de forma premeditada, planeja não recolher tributos, e isentaria, por via oposta, aquele que deixa de recolher tributos de forma ocasional, eventual e sem que haja o uso de um estratagema visando se locupletar de valores pertencentes ao Fisco.
Se é verdade o dito popular de que há males que vêm para o bem, o draconiano entendimento do STF, criminalizando a mera dívida de ICMS, pode acabar servindo de paradigma para equilibrar um pouco o sistema penal tributário como um todo, que hoje acaba colocando sonegadores e meros devedores no mesmo balaio, permitindo uma visão menos punitiva e mais justa no tratamento da mera dívida fiscal.
Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.
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