Por Humberto Tozze
Proposta nascida no Senado garante cota de gênero e valor mínimo para financiamento de campanha de mulheres, mas advogadas e parlamentares enxergam no texto a tentativa de anistiar os partidos que não se comprometerem com a inclusão de gênero e racial
A população brasileira é representada em sua maioria por mulheres. Elas são 52,2%, ou 109,4 milhões. Se fizermos um diagnóstico acurado, há, inclusive, uma pequena sobra nessa partição – a favor delas. Na política, o cenário é outro. Na Câmara dos Deputados, ocupam apenas 15% dos assentos. E no Senado Federal, a figura é ainda mais triste (e solitária): são somente 14%.
Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que caminha para conclusão na Câmara, propõe uma solução, gradual, para a desigualdade de gênero na política. A PEC 18/21, nascida no Senado, de autoria do senador Carlos Fávaro (PSD/MT), obriga os partidos a implementarem uma cota de presença feminina de, no mínimo, 30%, e garantir que essa mesma taxa seja distribuída na campanha eleitoral das candidatas.
No entanto, ao invés de ser motivo de celebração, a PEC 18 levantou alerta vermelho entre parlamentares, especialmente da Câmara, e constitucionalistas. Para elas, o texto passa longe do que promete, pois configura, no seu efeito final, uma tentativa de revogar as conquistas alcançadas pelas mulheres.
Em sua conta no Twitter, a deputada federal pelo PSOL-RS Fernanda Melchionna criticou a PEC e disse que ela traz anistia aos partidos políticos que escolherem não cumprir com o que a proposta visa implementar. Ou seja, ela desobrigaria as legendas de promover políticas afirmativas. Isso porque o texto aprovado não estabelece nenhuma punição aos partidos que não seguirem a norma constitucional. “É um desrespeito à participação feminina na política e uma afronta a direitos conquistados”, disse a deputada.
A advogada e professora de direito eleitoral na Escola Paulista de Direito Gabriela Araújo constata ameaça semelhante. Para ela, a PEC é vendida com roupagem de inclusão feminina, mas o que faz é o oposto: celebra uma “conquista para os partidos políticos” e não para as mulheres.
Já a advogada Maíra Recchia, presidente do Observatório Eleitoral da OAB-SP, enxerga a PEC com ambiguidade. Ela vê como necessária que a política afirmativa ganhe uma “envergadura constitucional”, mas também olha com apreensão o fato de que os partidos que não alocarem recursos referentes às mulheres não serão punidos. “Precisamos comemorar em se tratando de legislação que ganha agora espaço constitucional, mas me preocupa se esses recursos de fato serão aplicados, dada a não punição, ou a chamada anistia.”
Maíra diz que não vê viabilidade da aplicação da PEC, caso ganhe um formato final sem responsabilizar os partidos, dirigidos, em sua maioria, por homens. “Se você não coloca uma punição aos partidos que descumprirem essa obrigatoriedade de investimento às candidaturas tidas como minoritárias, nós acabamos tendo uma relativização de direitos. O que adianta você garantir, mas eventualmente não punir? Me parece um contrassenso da norma”, afirma a advogada.
O que diz a Proposta
A redação propõe modificações no artigo 17 da Constituição Federal, que esmiúça os direitos e deveres dos partidos políticos. O texto prevê que sejam destinados no mínimo 5% dos recursos do fundo partidário para incentivo e manutenção de “programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”. Um dos problemas, apontados pelas especialistas, mora no fim dessa frase. Os recursos alocados poderão ser aplicados “de acordo com os interesses intrapartidários”. Ou seja, estarão submetidos à vontade dos representantes.
Outro trecho, que de início parece anunciar uma vitória para as mulheres, garante que um mínimo de 30% do valor do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da fatia do fundo partidário, deverão ser repartidos para campanha eleitoral das candidatas. Caso o número de postulantes ultrapasse o mínimo exigido, a cifra deverá ser equivalente ao número de candidatas. Mas, novamente, a proposta deixa a cargo dos parlamentares o destino dos recursos.
O maior perigo, aponta Maíra, está localizado no Art. 3º, ao fim do texto, em que isenta os partidos de qualquer sanção, aquele que a deputada Fernanda Melchionna reconhece como uma forma de anistia: “Não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional.”
Para a advogada Gabriela Araújo, há outra questão. Ela entende que a PEC é redundante, pois repete normas já previstas em leis e pela resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “A lei e a jurisprudência já garantem mais do que essa PEC traz de bom para as mulheres, mas o que ela traz de retrocesso é muito maior: a anistia para os partidos e a mensagem de que eles não precisam cumprir com as políticas afirmativas e cotas legislativas de gênero, pois terão a garantia da impunidade.”
Direitos já garantidos
Em agosto de 2021, diversas organizações e movimentos sociais, entre eles o Observatório de Candidaturas Femininas da OAB-SP encaminharam uma nota técnica ao ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, detalhando os possíveis retrocessos que a nova reforma legislativa pode trazer, caso aprovada. Segundo o documento, o texto da PEC 18/21 deforma direitos já conquistados no que diz respeito à maior presença feminina nas duas casas do Legislativo. Para isso, apresentam extratos de leis já existentes e também da Resolução do TSE (nº 23.607/2019).
Gabriela lembra que a Lei nº 9.096/1995 já determina o repasse de no mínimo de 5% do Fundo Partidário com objetivo de ampliar a participação feminina no Legislativo. A legislação anterior, entretanto, destina o dinheiro para “Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher”, segundo o texto, enquanto a PEC deixa a cargo dos partidos. “Ele esvazia a Secretária da Mulher”.
Mais uma vez, entende se tratar de uma derrocada para as mulheres. “Os 5% do fundo partidário da lei de 1995 servem para incentivar a capacitação feminina para a política e a entrada de novas mulheres no dia a dia dos partidos, para democratizá-los.”
A lei anterior prevê que caso o partido não disponibilize o recurso conforme a legislação, “o saldo remanescente deverá ser aplicado no exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%”. Enquanto a PEC permite que os recursos sejam acumulados “em diferentes exercícios financeiros, podendo ser utilizados futuramente em campanhas eleitorais de respectivas candidatas”.
De acordo com a advogada, o novo texto permite que o financiamento impulsione apenas aquelas que já foram eleitas. “Se você permite que esses recursos sejam acumulados e usados apenas em época de eleição, perde o sentido de criação e participação feminina na política. Se jogamos para as eleições, fazemos com que aquelas que já estão ali aproveitem desses recursos para elas mesmas, ou seja, elegem quem já está na política.”
Em 2019, o TSE já havia aprovado uma resolução para aumentar o valor do fundo eleitoral para candidatas. O recurso mínimo, novamente, deveria ser de 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Além disso, o TSE utilizava o termo “gênero”, e não “sexo”, como é o caso da PEC. Dessa forma, o entendimento passou a abranger pessoas transgêneros – que devem ser identificadas conforme o gênero que se identificam. Com a PEC, a questão se torna passível de questionamento.
Outro aspecto é a exclusão do critério racial na divisão. Em 2020, o TSE, mais uma vez, estipulou uma norma, determinando que o financiamento deveria ser repartido entre mulheres negras e brancas. O texto da PEC, por sua vez, menciona uma única vez o critério racial, quando absolve os partidos de antemão (leia-se: anistiar) caso não destinem “os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas” antes da promulgação da proposta.
“Na hora de isentar os partidos de multa por não terem atendido os valores mínimos de gênero e raça nas eleições anteriores eles lembraram do critério racial, mas na hora de incluir não lembraram. Não foi por esquecimento, simplesmente não quiseram incluir o critério racial”, conclui Gabriela.
Após as mudanças pela Câmara dos Deputados, o texto volta para o Senado Federal para mais uma rodada de votação. Mesmo indignada com a questão, a advogada não enxerga o debate como vencido. “É uma emenda constitucional inconstitucional e passível de questionamento no STF [Supremo Tribunal Federal].”
Publicado originalmente na Revista Marie Claire.
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