Por Rose Dayanne
Em memória de Miroslav Milovic e das vítimas da Covid-19
O Grupo Prerrogativas trouxe de volta ao espaço público a palavra perseverança na homenagem ao ex-presidente Lula em 19/12/2021. O evento intitulado “Jantar pela Democracia” simbolizou muito mais que a outorga da premiação. A importância do Prêmio “Perseverança” está, sobretudo, em nos lembrar aquilo que havíamos esquecido. Somos muitos Lula.
Perseverança é um dos fios que compõe a singularidade de ser brasileiro. A solenidade do Grupo Prerrogativas homenageou a contribuição de Lula à democracia brasileira (algo inquestionável) e foi além ao rememorar nossa constituição social. Os preceitos democráticos e de justiça social ditos e repetidos no encontro estão inscritos no texto constitucional de 1988. Em defesa dessa escritura político-jurídica, muitos de nós, mesmo ausentes do ato, fizemos parte daquela ceia. Unidos pelo verbo perseverar. Ausências, presente.
Eventos, como esse, são brechas de esperança. Vivemos atordoados pelos horrores do atual desgoverno, máquina de produção de morte e destruição do país. Desprezadores da política. Os prêmios, por sua vez, são datas importantes no registro da história e dialogam com o contexto em que se inserem. Portanto, acabam por premiar não apenas o homenageado, mas aqueles que compartilham das suas ideias.
Em 2012, a filósofa Judith Butler recebeu o Prêmio Adorno pelas contribuições ao tema da ética e do feminismo. O discurso proferido ao receber a premiação foi intitulado com a pergunta: “Pode-se levar uma vida boa em uma vida ruim?” A autora dialogava com a obra Minima Moralia de Adorno e com a afirmação “não há vida correta na falsa” (“Es gibt kein richtiges Leben im falschen.”) [1] A Conferência, em síntese, alertava os perigos de separar a política da ética. O recado de Butler chega até nós, como modo de ler a contrapelo o Golpe de 2016 contra a ex-presidente Dilma Rousseff e a eleição por vir. A conclusão é: não há vida na política negacionista.
O discurso do ex-presidente Lula no Prêmio “Perseverança”, embora autobiográfico, inclui todos nós. É uma biografia com contornos de narrativa social. Poderíamos dizer uma cartografia latinográfica. Simbolizada também na canção de Belchior ao descrever as inúmeras dificuldades enfrentadas por um rapaz latino-americano. O agravamento da fome no Brasil, as vidas vulneráveis e os relatos inaudíveis ganharam voz e representatividade na fala de Lula. Várias mães de família invisíveis ganharam a imagem de dona Lindu como retratos do Brasil.
Nesse sentido, o discurso de Lula é o ato performativo da perseverança. Não é apenas fala, é ação. Não é individual, é coletivo. Lula é a personificação da perseverança como práxis histórica. É a inclusão de muitos outros na história. Queiram ou não, a ele estamos ligados. Porque ele é parte de nós. Dos nossos acertos e dos nossos erros. Lula é a nossa liga social e política. Ele, também, é o escândalo da politização das instituições do Poder Judiciário no Brasil.
A prisão de Lula mostrou o que o direito não deve ser. Não faltaram denúncias sobre as arbitrariedades jurídicas. Advogados em defesa da democracia e militantes incansáveis noticiavam ao mundo, em tempo real, as injustiças cometidas. A deformação jurídica foi construída com o propósito de proibir a participação de Lula nas eleições à Presidência de 2018.
Para a história da filosofia, toda vez que emitimos o juízo “isso não deveria ter acontecido” estamos diante do problema do mal. Tudo poderia ter sido diferente, mas não foi. O mal se concretizou. Na política, não há espaço para o “se”, logo nos tornamos vítimas e corresponsáveis deste erro judiciário. A ação política é o tempo do presente. Aqui e agora. Nesses tempos sombrios, precisamos nos manter unidos, não há tempo para o talvez.
Muito se questionou a multiplicidade de pessoas e políticos no encontro do Prêmio “Perseverança”. Não podemos deixar que o inimigo nos divida. O projeto das esquerdas é da diferença. Quem institucionaliza a identidade, os rótulos “cidadãos de bem” versus “inimigos vermelhos” são os mesmos adversários do diálogo e da diversidade. O respeito aos outros é a afirmação da política e do projeto democrático no Brasil. A democracia se fortalece com os dissensos não com ameaças e represálias.
A pluralidade nos constitui enquanto brasileiro e latino-americano. Não há condições ideais na política, quem tem fome, tem pressa. Não existe esquerda uniformizada e com aversão à diferença. Ser de esquerda, no século XXI, pressupõe abertura aos outros. A força motriz contra o autoritarismo é a democracia. Podemos aproveitar os ventos latino-americanos que derrubaram políticos neoliberais na Argentina, no Peru e no Chile, para juntos derrotarmos o fascismo no Brasil.
Os democratas são bem vindos à ceia. Não é com medo da traição que negamos o diálogo. Ser antifascista, nesse momento, nos une. Como ensinava Deleuze, ser de esquerda é uma percepção. “A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda”. Até porque isto pressupõe um padrão vazio. “A esquerda é o conjunto de processos de devir minoritário.”[2] Não podemos ser guiados pela política do ódio e pela exclusão. A esquerda no Brasil e, em qualquer lugar, não pode ser a negação daquilo que constitui sua potência.
O grau de radicalidade dos projetos sociais, como sempre, estará em disputa. Projeto a projeto. Na cena política e na atuação dos movimentos sociais. Nunca foi fácil, agora muito menos seria. “Não há emancipação como conceito derivado da hegemonia, ou simplesmente como proposta simbólica. A emancipação é prática política efetiva de resistência e criação cooperativa.” [3]
O Prêmio Perseverança “Sigmaringa Seixas” deixa lições. O direito não se confunde com o poder. O direito é o instrumento democrático que deve barrar a violência do poder. Quem precisa do direito não são os poderosos. “O poder é o grau zero da potência”. A força do direito está na potência dos fracos. A presunção de inocência, o devido processo legal e os princípios democráticos foram defendidos pelo Grupo Prerrogativas pela metáfora do pacto de sangue. Uma injustiça contra um, é uma injustiça contra todo mundo.
O nome do prêmio é significativo, pois anuncia as dificuldades da vida. Somos “fracos, talvez, sem conhecimento, sem apoio da ordem jurídica. Mas nessa fraqueza, Paulo fala, nessa ausência, talvez, dos lugares fortes, do poder que determina, está a potência.”[4] Perseverança, força presente, Sigmaringa Seixas, amigo ausente. Lula junto a milhares de brasileiros, em 2022, tem a chance de conjugar o verbo perseverar e consolidar a justiça messiânica dos vencidos. Em nome das injustiças cometidas e daqueles que partiram. Corpos ausentes. Vazios que agora fazem parte de nós.
O conceito de conatus de Spinoza é um vestígio desse esforço em “perseverar no ser” em meio às adversidades da existência. Um exercício em relação a si, em relação aos outros e em relação ao mundo. Portanto, “esforcemos por fazer com que se realize tudo aquilo que imaginamos levar à alegria; esforcemos, por outro lado, por afastar ou destruir tudo aquilo que a isso se opõe, ou seja, tudo aquilo que imaginamos levar à tristeza.”[5]
O prêmio “Perseverança” entregue de forma singular a Lula é coextensivo a uma multidão de brasileiros afetados pelo desejo de renovação na vida e na política. As seqüelas da eleição de 2018 estão em cada um de nós para sempre. Um novo ano se aproxima. É a nossa chance inscrita na contingência da história. O filósofo sérvio-brasileiro Miroslav Milovic afirmava: “justiça é a justificação da vida.”[6]
Éramos 100% Lula. Agora somos 1000%.
[1] ADORNO, T. W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. Luis Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1993, p. 33.
[2] DELEUZE, G. Abecedário de Gilles Deleuze: transcrição integral do vídeo para fins exclusivamente didáticos, 2018.
[3] NEGRI, Toni. Entrevista de Toni Negri ao La Nación, 2012.
[4] MILOVIC, Miroslav. Ius siv Potentia: Paulo e Spinoza. Rev. Interd. em Cult. e Soc. (RICS), São Luís, v. 5, n. 2, p. 356 -371, jul./dez, 2019.
[5] SPINOZA, B. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
[6] MILOVIC, Miroslav. Direito ao corpo em Nietzsche e Foucault. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/lahrs/article/view/69425/36803.
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