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Quando a política é um caso de vida ou morte

Por Marcelo Semer

Se a previsão de Jair Bolsonaro estiver certa, de que 70% dos brasileiros serão infectados com o coronavírus, “se não for hoje, vai ser semana que vem, mês que vem”, providenciar um lockdown no país inteiro deveria ser sua primeira obrigação. Tarefa para ontem.

Com o volume de internações que a Covid-19 exige, e nos casos mais graves, o emprego de ventilação mecânica e leitos de UTI, o colapso hospitalar seria gigantesco e o acúmulo dos mortos absolutamente insustentável. Nossas casas se transformariam em cemitérios.

O último líder mundial que cogitou simplesmente esperar os efeitos de uma “imunidade de rebanho”, o primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson foi compelido a mudar de ideia ao se deparar com as projeções matemáticas que lhe imporiam a responsabilidade por mais de um milhão de mortos – o que nem evitou que ele mesmo se transformasse em vítima da doença.

Bolsonaro já tratou a Covid-19 como uma “gripezinha” e mais de uma vez disse que não seria afetado caso a pegasse, por seu “histórico de atleta”. Nas seguidas aparições em público, que provocam aquilo que a própria orientação do governo recomenda oficialmente evitar (aglomerações e contatos pessoais), tem clamado pelo fim das quarentenas impostas pelos governadores, de diferentes partidos, com a afirmação de que devemos “enfrentar o vírus sem medo e sem covardia”.

Surpreendemente, Bolsonaro não está só.

Há uma horda de apoiadores fanáticos que o replicam e, com seu estímulo, provocam protestos e aglomerações com o objetivo de bombardear as medidas protetivas. Como foi sábado em São Paulo, com o buzinaço diante de um complexo hospitalar, e domingo em Brasília, numa comunhão com o próprio, num libelo contra a democracia e o estado de direito, como sempre, aos olhos inertes das demais autoridades constituídas.

Já era difícil entender como seus acólitos tinham se empenhado tanto num protesto político bem no meio do mês de março, quando a transmissão comunitária do vírus já havia se instalado no país. Mas que algo desse tipo seja realizado agora, depois de mais de duas mil mortes confirmadas (e especula-se que, na melhor das hipóteses, o dobro disso a confirmar), é praticamente incompreensível.

A imersão no estado de negação sobre a pandemia é de tal monta que todos os demais assistem incrédulos a tais manifestações. Como dizia Stanley Cohen, em seu prestigioso States of denial: knowing about atrocities and suffering (Polity Press, 2008), é como se eles não soubessem o que sabem.

Teorias conspiratórias vitaminam o negacionismo e interesses econômicos imediatos seduzem os que têm nos lucros a meta prioritária de vida. Mas ao mesmo tempo que o compadecimento dos pequenos autônomos recheia o discurso do governo, toda a sorte de obstáculos é inserida para que a (diminuta) ajuda do Estado chegue rapidamente aos necessitados.

A submissão aos interesses empresariais pode muito bem justificar a ideologia. Afinal, como não se cansam de lembrar a encantadora Liza Minnelli e Joel Grey em Cabaret (de Bob Fosse), “money makes the world go around”. Mas a manifesta irracionalidade está permeada por uma lógica ainda mais brutal: Bolsonaro acredita que não será atingido porque apenas os fracos e doentes ficarão pelo caminho.

Enfim, “a sobrevivência dos mais aptos”, como diria Herbert Spencer, a quem se atribui, no século 19, o desenvolvimento do darwinismo social, adaptação perversa ao ambiente humano da teoria da seleção natural. É normal que os mais aptos sobrevivam, vençam, tenham sucesso, fiquem ricos; é natural que os menos aptos fracassem e sucumbam. Como assinala Gabriel Anitua na cruel conclusão da premissa de Spencer: “Qualquer intervenção a favor dos mais prejudicados só poderia, a longo prazo, prejudicá-los ainda mais, pois impediria que fossem desenvolvidas técnicas de superação de sobrevivência” (História dos pensamentos criminológicos, Revan, 2007, p. 292).

Não precisa de muito para se intuir que essa matriz da meritocracia evolucionista acabaria por derivar em uma infinidade de reflexos eugenistas (a busca do homem perfeito) e racistas (a inferioridade pela genética). Muito do pensamento, por assim dizer, de Bolsonaro, se explica por esta lógica, desde a humilhação de quilombolas, ultraje a indígenas, desprezo de nordestinos ou agressões pura e simples a homossexuais, como se todos eles fossem culpados pelo próprio rebaixamento – como quando sugeriu às mulheres andarem armadas para acabar com o “mimimi” do feminicídio.

Os paradigmas pretensamente científicos do darwinismo social contribuíram para justificar os maiores massacres da humanidade, da longeva escravidão dos africanos ao holocausto nazista.

Por motivos ainda mal explicados, fé, prepotência ou a simples ignorância (cuja potência, estamos aprendendo a jamais desprezar), não são raros os que se dispõem a segui-lo, para que lado for. Como já havíamos inferido anteriormente, o presidente governa para uma minoria ruidosa, mas fanática o suficiente para acompanhar, em qualquer circunstância, aquele que chamam de mito.

Muito mais do que acordos partidários ou maiorias no Congresso, volúveis, como o caso Dilma mostra com especial precisão, o que o supremacista busca sempre, sobretudo, é a fidelidade. Por sobre o direito, o Estado ou a Constituição.

Governar em contínua guerra, criando inimigos tão imaginários quanto poderosos, através de discursos de ódio que se sobreponham à razão.

A história já nos mostrou o quanto isso funciona.

E o mal que produz.

Artigo publicado originalmente na Revista Cult.

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