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Sobre a estupidez brasileira

Sobre a estupidez brasileira

Por Georges Abboud

Cada período e sociedade devem confrontar suas próprias parcelas

Robert Musil (1880-1942) talvez seja meu escritor favorito. O autor austríaco escreveu, ao mesmo tempo, obras monumentais como “O Homem Sem Qualidades”, e, com o mesmo brilhantismo, ensaios curtos, em especial o intitulado “Sobre a Estupidez”. Ele enxergou na estupidez uma força autoritária, que empurrou os homens em direção às ideologias totalitárias e ao esquecimento de si próprios, domesticando os indivíduos e degenerando as recentes democracias da primeira metade do século 20.

Nossa Constituição e as atuais supremas cortes são produtos desse pós-guerra. Elas são os esteios das democracias constitucionais formadas na segunda metade do século 20. Ambas têm por função assegurar a proteção dos direitos fundamentais contra toda degeneração majoritária, seja proveniente do Estado ou de parcelas da sociedade.

Esse introito é fundamental para responder, com toda lhaneza possível, o artigo “Evitando distorções” (8/4), de Ives Gandra da Silva Martins, publicado nesta Folha. Não se trata de responder aos argumentos da tese do “poder moderador”, porque esta já foi refutada e sepultada pelo Supremo Tribunal Federal, de forma unânime e eloquente.

Ocorre que o professor, além de tardios esclarecimentos sobre “distorções” de sua tese, parece ainda não estar convencido da invalidade dela própria. No artigo, apresenta sua perplexidade, afinal, “se o Poder Judiciário invadir a competência legislativa do Congresso, como deverá o Parlamento proceder, em sua prerrogativa exclusiva de zelar pelo seu poder-dever de elaborar as leis?”.

Antes, porém, uma premissa precisa estar clara: a discordância por parte do Legislativo ou da sociedade civil acerca de uma decisão do STF não significa ter havido ilegítima invasão na competência do Legislativo. Pelo contrário, no Brasil, corretas decisões da corte têm sido objeto de desinformação e ataque, conforme já apontei antes neste jornal.

Por ora, apenas registro que, sobre temas constitucionais, considero o Supremo a instituição mais legítima e estruturada para realizar sua interpretação e, com certeza, intelectualmente muito mais preparada que influenciadores, professores e jornalistas que já buscaram enxergar no art. 142 alguma espécie de tutela militar em relação à sociedade e às instituições brasileiras.

De todo modo, estou na reta final do texto e o leitor pode estar pensando que o questionamento lançado por Ives Gandra ainda não foi respondido. É porque a isso basta uma linha.

Se o Legislativo considerar que o STF está exorbitando sua atuação, por meio de interpretação judicial, somente uma coisa pode ser feita: legislar. Nada mais. O “marco temporal” é exemplo disso. O STF julgou, o Legislativo discordou e legislou; em seguida, o STF foi provocado a reexaminar a matéria. Tudo dentro das regras constitucionais.

O que o Legislativo não pode fazer é, “exempli gratia” (“por exemplo”), convocar Forças Armadas, interferir nas prerrogativas da Suprema Corte e requerer o impeachment de ministros do STF por discordar de suas decisões.

Foram incontáveis as postagens e declarações de caráter golpista que usaram o nome de Ives Gandra e a “tese” do “poder moderador” na tentativa de conferir o mínimo de credibilidade. Quero crer que, a partir da decisão do Supremo, elas não contarão mais com qualquer espécie de silêncio do professor, mas com seu repúdio.

Hoje, vivenciamos o período democrático mais longevo do Brasil, mas o golpismo que degenera democracias constitucionais continua existente e, não fosse o STF, provavelmente teria logrado algum tipo de êxito.

O texto de Musil é brilhante pela sua atemporalidade: cada período e sociedade devem confrontar sua própria parcela de estupidez.

A contemporânea estupidez brasileira, que se iniciou de forma cômica e caricata com o terraplanismo, culminou numa degenerada e egoísta visão de mundo contra a ciência e imputou falsas acusações à credibilidade do sistema eleitoral brasileiro. Essa estupidez adquiriu força sob um viés autocrático e golpista que passou a vilanizar o STF para a sociedade e pressionar a Suprema Corte fazendo uso da pior ideia já discutida no constitucionalismo democrático brasileiro: o “poder moderador das Forças Armadas”.

Contra a estupidez brasileira, o STF tem feito sua parte. Resta saber se a intelectualidade, as redes sociais e a imprensa especializada também estão dispostas a fazer a sua.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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