Por Tilman Kuhn e Vinicius Marques de Carvalho
Em que ponto estamos ao lidar com os riscos à livre concorrência nos mercados?
Há momentos na história em que os movimentos da conjuntura política, social e econômica se entrelaçam de tal modo que levam sociedades inteiras à exaustão civilizatória. Quando isso ocorre e a eficácia limitada de medidas rotineiras de fuga para a frente, ficam evidentes as dimensões estruturais das nossas fraturas expostas. Nos dias atuais, muitos autores, principalmente economistas, inclusive de matriz neoclássica, têm apontado o dedo para uma causa comum da nossa malaise: a concentração de poder econômico. E o antitruste é a base para o enfrentamento de tal questão – é trabalho dos responsáveis pela aplicação do antitruste garantir que a livre competição seja protegida, que as barreiras à concorrência sejam eliminadas e que práticas anticompetitivas sejam banidas. A livre concorrência é a base para uma economia “democrática” na qual todos têm uma chance justa de rivalizar e a vontade da maioria, e não de alguns poucos poderosos, seja bem-sucedida.
Embora a maioria das economias e sociedades desenvolvidas acreditem que lutar pelo crescimento econômico é benéfico, o sentimento comum é o de que todos devem seguir as regras e o de que, na verdade, aqueles com grande poder econômico podem ter que estar sujeitos a regras especiais. Sendo assim, observa-se um consenso cada vez maior de que os aplicadores do antitruste precisam de ferramentas legislativas e de enforcement especiais para lidar com o poder econômico que muitas vezes não podem ser enquadradas nos termos tradicionais do antitruste. Além de se considerar a introdução de novas ferramentas, como, por exemplo, as que a Comissão Europeia está atualmente propondo, também se observa um ceticismo crescente em relação a operações que consolidam determinados setores. Por exemplo, na fusão Dow/DuPont, a Comissão Europeia sugeriu enfaticamente que uma concentração anterior teria levado à redução de esforços inovativos e de produção, e que uma operação adicional iria, mais uma vez, ser prejudicial à concorrência em relação à inovação e, consequentemente, ao desenvolvimento de novos produtos no mercado que poderiam contribuir com o enfrentamento de um grande desafio social do futuro: alimentar uma população cada vez maior.
Todas essas considerações são parte de uma discussão sobre se o enforcement antitruste, no sentido mais estrito, é suficientemente robusto e se novas ferramentas são necessárias para lidar com os riscos à livre concorrência nos mercados. Emergem, nesse contexto, ferramentas para intervir em mercados antes que as empresas se tornem dominantes ou para lidar com self-preferencing praticados por empresas que detenham significativa participação em diversos mercados, novos critérios de notificação de operações, teorias do dano e/ou remédios para reconhecer operações anticompetitivas (nas quais a comprovação de tal suspeita a partir das ferramentas tradicionais e informações disponíveis seja difícil).
Mas o debate não se encerra aí. Uma nova era de crescente nacionalismo pode estar batendo à porta impulsionando ações protetivas por parte dos Estados em relação a empresas “domésticas”. É o caso do debate europeu sobre se a Comissão Europeia deve permitir que operações aparentemente anticompetitivas prossigam a fim de criar “campeões europeus” e envidar maiores esforços para intervir em relação a subsidiárias estrangeiras. Outro debate diz respeito a um maior escrutínio da União Europeia e de seus países membros no que diz respeito a investimentos estrangeiros diretos, especialmente para evitar aquisições “oportunistas” que tirem vantagem de empresas europeias em dificuldades financeiras e evasão das principais tecnologias e recursos europeus.
Em especial, o debate sobre os “campeões europeus” levantou a questão mais ampla de se fatores “não-competitivos”, neste caso, as preocupações relacionadas à política industrial, deveriam ser levados em consideração nos processos e análises antitruste. Alguns países, como a Alemanha, optaram por instrumentos distintos – a autoridade da concorrência analisa operações somente com base em fundamentos antitruste, e o Ministro Federal de Assuntos Econômicos pode anular eventual veto à operação com base em preocupações relacionadas à política industrial. Ele ou ela tem a responsabilidade política por essa decisão, enquanto a autoridade antitruste é responsável somente pelas análises típicas do direito da concorrência.
Há outro desafio social que levanta a mesma questão sistêmica: a mudança climática e a sustentabilidade. Muitos setores estão trabalhando duro para atingir as metas climáticas estabelecidas pelo Acordo de Paris, mas com o crescimento populacional e econômico simultâneos e, portanto, com a crescente demanda por determinados produtos, isso tem se tornado cada vez mais desafiador. Por exemplo, devido ao crescimento populacional global, espera-se que a demanda por produtos químicos e materiais quadruplique até 2050. Nenhuma empresa pode enfrentar esses desafios sozinha. Orientações e cooperações entre todos os setores são necessárias, e algumas já tiveram início – como a iniciativa do Fórum Econômico Mundial sobre Collaborative Innovation for Low-Carbon Emitting Technologies in the Chemical Industry. Aqui, muitas empresas têm demandado maior orientação sobre o que se considera uma cooperação necessária para a persecução de um bem maior, mas algumas dessas iniciativas são inconcebíveis sem, pelo menos, alguns efeitos restritivos sobre a concorrência.
Mais uma vez, surge a questão de saber se objetivos públicos não relacionados à concorrência devem ser considerados nas análises realizadas pelas autoridades antitruste e pelos tribunais em relação às operações e às cooperações entre concorrentes.
Isso acarreta, naturalmente, riscos importantes. Se começarmos a introduzir uma categoria de objetivo de política pública devido à sua essencial importância, onde é que traçamos os limites? Considere-se as relações de emprego: devemos permitir que operações que resultem em prejuízos à concorrência ocorram e fazer o sacrifício de os consumidores pagarem mais em troca da esperança de salvar mais empregos, possibilitando que uma empresa combinada subsista melhor do que duas empresas independentes menores?
Evidentemente, a principal preocupação é a de que a introdução de questões como o enfrentamento da desigualdade, a melhoria das condições da renda do trabalho, o aumento da competitividade no comércio internacional e, por fim, o atingimento de metas ambientais, acarretaria problemas de toda sorte, em particular, questões de como equilibrar esses interesses com os da livre concorrência em casos concretos. Estaríamos, assim, ameaçando o grau mínimo de estabilidade e previsibilidade que o antitruste supostamente possui. Soma-se a isso o fato de que essas agendas tenderiam a inviabilizar os já combalidos mecanismos de convergência internacional, além de imporem às autoridades concorrenciais a resolução de dilemas entre políticas e objetivos públicos. Essa última dimensão ganha ainda mais relevo em jurisdições em que a autoridade concorrencial dá a última palavra sobre atos de concentração empresarial, como é o caso do Brasil.
Isso pode acontecer basicamente de duas formas: (i) no primeiro cenário, o antitruste assimilaria preocupações com desigualdade, sustentabilidade e comércio internacional por meio dos parâmetros tradicionais de análise de efeitos, baseados na primazia do consumer welfare como princípio norteador e no uso das ferramentas da organização industrial como método de aferição; (ii) no segundo cenário, parte-se de uma visão mais crítica dos parâmetros vigentes e busca-se inserir novos valores a serem ponderados na análise de condutas empresariais. Essa segunda via ganhou vigor recentemente e tem movimentado as placas tectônicas do antitruste, em repouso desde a década de 1980. Isso se deve ao fato de haver sérias dúvidas sobre se a forma como os potenciais efeitos de estratégias empresariais sobre o bem-estar do consumidor têm sido auferidos pelas autoridades ao longo dos últimos 40 anos não teria colocado água no moinho da concentração de poder e renda.
Esses dois movimentos, com ênfase no segundo, levantam uma série de preocupações sobre perda de organicidade do antitruste, seja devido aos desafios decorrentes da conciliação – ou sobreposição – de interesses igualmente legítimos, seja pela substituição de uma metodologia de análise reconhecidamente rigorosa do ponto de vista econômico, por algo ainda pouco palpável e infuso por considerações de natureza retórica e de ponderação principiológica.
Ambos os caminhos suscitam dilemas substanciais. Podemos nos deparar com situações em que uma determinada estratégia empresarial, a despeito de gerar acréscimos de bem-estar para os consumidores na forma de redução de preços e/ou aumento de oferta de um bem, acarrete impactos negativos do ponto de vista ambiental ou social. O inverso também pode ocorrer, uma estratégia empresarial pode viabilizar ganhos sociais ou ambientais e simultaneamente produzir um aumento de preço para os consumidores.
As autoridades podem explicitar seus parâmetros de análise, referindo-se a standards regulatórios dimensionados por outras políticas publicas, usando ferramentas da economia comportamental para identificar vieses do consumidor, ou ainda, por meio de guidelines que organizem a formatação de teorias do dano não baseadas em preço. Nota-se que, a depender da variável de qualidade que se queira valorizar, apoiar-se em referências principiológicas baseadas na ideia hayekiana de concorrência como processo de descoberta pode não ser o melhor caminho, sobretudo quando tratamos de questões ambientais em que, muitas vezes, o caminho para atingir patamares de compliance elevados se dá por meio de uniformização de práticas e não da sua diversificação.
Algumas iniciativas já têm sido implementadas nessa direção na Europa no que se refere à possibilidade de viabilização de acordos entre concorrentes para consecução dos objetivos do Green Deal – e os esforços ali colocados são certamente os mais bem desenvolvidos nesse sentido, motivo pelo qual merecem maior atenção.
Nesse contexto, uma das vias para que se persigam os objetivos do Green Deal é a atuação estatal, por meio de procedimentos legislativos. Uma segunda via diz respeito à atuação do setor privado, que pode ser mais adequado para lidar com essas questões, especialmente porque as empresas possuem maior conhecimento e experiência específicos para identificar as ações exatas e necessárias para o desenvolvimento sustentável. No entanto, as empresas, individualmente, não são capazes de promover mudanças sistêmicas de forma unilateral, especialmente em mercados onde os consumidores não são sensíveis à sustentabilidade. A cooperação é, portanto, fator-chave.
No próximo artigo desta série de duas partes, abordaremos como a Comissão Europeia e a autoridade antitruste brasileira têm olhado para essa questão até o momento, e o que isso representa para o futuro.
[*] Parte desse artigo é baseado no artigo publicado por Kuhn/Arnolds, Sustainability defense for competitor collaborations, Competition Policy & Law Debate, Volume 6, Issue 2, 2020, pp. 5 et seq.
Artigo publicado originalmente no Jota.
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