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Talvez os pobres salvem a democracia e, pois, a imprensa

Talvez os pobres salvem a democracia e, pois, a imprensa

Por Reinaldo Azevedo

Sociedade está desaparelhada para enfrentar assalto às instituições

O Datafolha vai dizer daqui a pouco se a cruzada criminosa de Jair Bolsonaro no 7 de Setembro interferiu de forma importante na decisão do eleitorado. Estava em curso já um movimento de discreta aproximação entre os líderes das pesquisas. Tendo havido uma aceleração, pode-se especular que a “demonstração de força” tenha surtido efeito.

TSE não vai cassar a chapa encabeçada pelo presidente. Ou sobreviria o caos. O populismo em tempo de redes é novo, mas a prática é antiga: acuar as instituições ou cooptá-las, a exemplo da Procuradoria-Geral da República. Os inquéritos hoje sob a relatoria de Alexandre de Moraes são a única barreira de contenção. Moraes se tornou um dos alvos da imprensa.

A extrema-direita populista que fala diretamente às massas por intermédio das redes sociais, sem qualquer mediação, populariza, como é sabido, teses e pautas as mais obtusas e reacionárias. O algoritmo virou senhor da razão e critério para aferir a verdade.

Está hoje nas mãos dos mais pobres salvar a democracia no Brasil. A despeito de suas brutais imperfeições, o regime nos permite, ao menos, equacionar as diferenças e buscar modos de corrigir desigualdades. Há aí um aparente paradoxo, não é? As dificuldades materiais eram rotineiramente compreendidas, e isso fazia sentido no mundo pré-redes, como um entrave ao acesso a tecnologias de ponta e, por consequência, à informação qualificada.

Até a semana passada, o mundo bruto que Bolsonaro representa e vocaliza, em que uma pistola é a última expressão do argumento, encontrava na camada da população que recebe até dois salários mínimos o seu limite. Num outro corte, que não é o de renda, mas que também conhece a exclusão, as mulheres constituíam uma barreira importante —aquelas mesmas evocadas em palanque pelo presidente dito “imbrochável”, que fez de Michelle mero instrumento da sua autoglorificação. E, como também evidenciavam os números, o Nordeste era outro território inóspito para o destruidor de instituições.

Como resta óbvio, é claro que Bolsonaro tem milhões de eleitores em todas essas categorias, mas os números que o separavam de Lula —até a semana passada, reitere-se— tornavam impossível a sua vitória. Nesses casos, a vida ela-mesma tem se sobreposto ao Brasil paralelo das redes, que obviamente se traduz também em pessoas concretas, ou não estaríamos nesse lamaçal legal e institucional. A esmagadora maioria dos beneficiários do Bolsa Família (“Auxílio Brasil” é bolsonarês), por exemplo, não haviam trocado os R$ 200 suplementares (até dezembro) por seu voto.

Sim, leitoras e leitores: a sobrevivência do regime de liberdades públicas e individuais depende hoje, em larga medida, do voto dos pobres no geral —e das mulheres pobres em particular. No mais, constata-se, de maneira um tanto aterradora, que as instituições do Estado e mesmo as da sociedade civil estão desaparelhadas para enfrentar o assalto à democracia.

Vimos, por exemplo, parte da imprensa a transmitir em tempo real —e parcela dela o fez por ingenuidade, não por adesão ideológica— os comícios ilegais de Bolsonaro, ecoando a voz da barbárie. A agressão à Lei Eleitoral e à Constituição ampliava, assim, o seu público. E que se note: um dos inimigos da massa que foi reverenciar o seu “duce” era justamente a imprensa. Não por acaso, um cartaz sórdido, pendurado num guindaste, demonizava de maneira covarde e asquerosa a jornalista Vera Magalhães.

Mais: aqui e ali, articulistas convidaram os leitores, espectadores, ouvintes e internautas não bolsonaristas a reconhecer, afinal, a força do “Mito”, condescendendo com o criminoso contumaz porque, afinal, não foi tão golpista assim —só um pouco. Está em curso um processo de normalização da política do ódio.

Salvando a democracia, os pobres contribuirão também para salvar a imprensa.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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