Por Fernanda Brigatti
Um cidadão branco que se incomode com o modelo do programa de trainee criado pela rede Magazine Luiza exclusivamente para pessoas negras terá poucos argumentos para comprovar ser vítima de discriminação racial, afirma a juíza do Trabalho Noemia Aparecida Garcia Porto, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
“Como esse branco vai argumentar discriminação quando os postos de trabalhado concretamente analisados naquela empresa são majoritariamente ocupados por brancos?”
A rede varejista anunciou na sexta-feira (18) que só aceitará candidatos negros em seu programa de emprego para recém-formados. No sábado (20), a juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça usou o Twitter para criticar a decisão da empresa. Sua publicação original foi apagada, mas ainda está lá sua resposta ao comentário feito por outro usuário: “Na minha Constituição isso ainda é proibido”.
No sábado, a Bayer também anunciou um programa de trainees voltado exclusivamente para negros.
À Folha a presidente da associação dos juízes do Trabalho defendeu a iniciativa da Magazine Luiza e disse que a criação do programa é, além de constitucional, desejável.
Questão constitucional
Ao contrário do que foi dito no final de semana, a iniciativa privada assumir o protagonismo em uma ação afirmativa de inclusão, de cota racial, é não só permitido como está dentro do que a própria Constituição brasileira prevê.
No artigo 3º, ela fala que, além de promover o bem de todos, é responsabilidade da República Federativa do Brasil combater todos os preconceitos, de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. A Constituição brasileira é até meio repetitiva nisso.
O artigo 5º diz que todos são iguais perante a lei, que homens e mulheres são iguais nos termos da Constituição, que o racismo é crime inafiançável, imprescritível. É um texto bem repetitivo.
Igualdade significa reconhecer que historicamente, por razões diversas, há pessoas que são tratadas em patamares de subcidadania. Reconhecendo isso, é obrigação dos três Poderes constituídos, Executivo, Legislativo e Judiciário, instituir fórmulas de correção da desigualdade persistente.
Inovação
Qual é a novidade aqui? A própria Constituição estabelece que essa não é uma obrigação só dos três Poderes. Existe uma responsabilidade compartilhada com a sociedade civil. Nós, como pessoas físicas ou as empresas, como pessoas jurídicas, somos os detentores dos direitos da Constituição, mas somos devedores desses direitos. E a gente deve respeito a esses direitos nas nossas mais variadas relações.
Diversidade
A iniciativa vinda de empresas, portanto do setor privado, que as faça assumir essa responsabilidade constitucional, na qual ela diz assim: “Olha, eu tenho um percentual ínfimo de negros nos meus quadros e isso é inadmissível, portanto, farei a correção para que o meu quadro de trabalho seja melhor e mais representativo”. Quando a empresa faz isso, ela não apenas cumpre a Constituição. Ela assume esse protagonismo.
Não é que não seja permitido. É mais do que isso. É exigível.
O que a empresa está fazendo é corrigindo a desigualdade que ela vinha até aqui praticando na contratação. A correção não pode ser barrada pelo Judiciário. Ao contrário, tem que ser celebrada.
Racismo
A gente tem muita dificuldade de resolver um problema às escâncaras. Na ponta final, a pessoa que é mais discriminada é a mulher negra. Ela tem duas interseccionalidades, o gênero e a raça. Você vê, desde os anos 1990, 2000, alguma melhoria aqui ou acolá. Mas a gente chega ao século 21 e estamos sem melhorias substanciais.
Jurisprudência
Já tivemos, no passado, em meados da década de 1990, as ações pioneiras no tema da raça, propostas pelo Ministério Público do Trabalho. Naquela ocasião, o alvo era a inexistência de negros no setor bancário. Essas ações foram muito polêmicas e causaram estranhamento, mas, no final, os bancos fizeram termos de ajustamento de conduta com o Ministério Público do Trabalho se comprometendo a criar ações internas para estimular a contratação de negros e de negras.
A novidade aqui é perceber que, sem precisar de uma ação do Ministério Público do Trabalho em que se discuta discriminação, as próprias empresas tomaram essa iniciativa, e num setor diferente do que eu estou falando, que era o bancário, num setor de vendas, de comércio, voltado a prestação de serviços.
Questionamentos judiciais
Vejo poucos argumentos que sustentariam o bloqueio à iniciativa. Minha convicção é a de que não existem argumentos jurídicos para barrar essa iniciativa, muito pelo contrário.
Quem poderia propor uma ação? Uma pessoa, uma mulher ou homem brancos que gostariam de se submeter ao processo seletivo e não puderam porque tem como pressupostos candidatos negros e negras. Como esse branco vai argumentar discriminação quando os postos de trabalhado concretamente analisados naquela empresa são majoritariamente ocupados por branco?
Teria nessa ação judicial quase nenhuma argumentação jurídica –e eu falo quase nenhuma porque sempre tem um ou outro argumento.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
1 Comentario
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JASilva
24/09/2020, 07:46Todo processo de mudança traz turbulências. Isso é inerente e intrínseco ao processo. Vamos torcer para que os resultados compensem os problemas que surgirem.
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