Por Tiago Resende Botelho e Tiago Vinicius André dos Santos
A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância foi adotada pela Assembleia Geral dos Estados Americanos (OEA), na Guatemala, no ano de 2013, com o apoio do Estado brasileiro. Desde então, por ser um tratado de Direitos Humanos com a máxima de extinguir e/ou mitigar os efeitos do racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, possuía o status de norma supralegal. Isso quer dizer que, na esfera jurídica nacional, estava abaixo da Constituição, mas acima das leis vigentes.
Seguindo os ritos de recepção de tratado internacional de direitos humanos, no ano de 2020 a respectiva Convenção foi apresentada e aprovada na Câmara dos Deputados. No ano de 2021 ganhou novos contornos, pois foi aprovada pelo Senado por meio de decreto legislativo. Estava, portanto, a caminho de ganhar status de norma constitucional, pois de acordo com Constituição Federal os tratados internacionais de direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais.
Assim, bastava sua promulgação para ter força de Constituição, e tal ato veio por meio do Decreto 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Mas qual a importância? A resposta possui duas dimensões igualmente importantes: enquanto parâmetro jurídico e enquanto parâmetro para debates mais conectados com a realidade do racismo à brasileira.
É importante entendermos que a Convenção, após sua promulgação, passou a valer como se a Constituição fosse no Brasil. É um pedaço dela que não foi promulgado em 5 de outubro de 1988, mas vale tal qual e ganha lugar de supremacia sobre as demais normas legais. Isso quer dizer que qualquer manifestação do poder público e as leis vigentes no país precisam buscar prevenir, eliminar, proibir e punir todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância. Caso contrário, tais atos e leis serão inconstitucionais, devendo ser perseguidos juridicamente.
Com a promulgação da Convenção, a luta contra o racismo ganha ainda mais força, pois poderá contar com um instrumento jurídico com status de superioridade até então inédito na história do país, mas não apenas isso. Ela estabelece também importantes contrapontos às discussões que são feitas em nossa sociedade, muitas vezes sem embasamento teórico, senso de realidade, desonestas e produtoras de narrativas raciais delirantes.
Por exemplo, a Convenção avançou no debate ao considerar explicitamente como vítimas do racismo, especialmente, as populações afrodescendente e indígena, o que significa dizer que o contexto histórico regional de violação de direitos humanos nas Américas, caracterizado por processos violentos da colonização e da escravidão de africanos e indígenas, é levado em consideração ao especificar quem são os principais destinatários desse conjunto de direitos. Mais além, reconhece a existência não apenas da dimensão interpessoal, mas também institucional e estrutural do racismo, ou seja, reconhece que o racismo faz parte de todas as dimensões da vida da população negra (saúde, segurança pública, educação, tributação, trabalho, lazer etc.). Por fim, prescreve, também explicitamente, que ações afirmativas, tão perseguidas no Brasil, são instrumentos adequados para a mitigação das opressões raciais e não constituem discriminação racial enquanto a igualdade entre grupos raciais distintos não for alcançada.
É, portanto, a própria Constituição Federal se atualizando e explicitando que não há espaço para os delírios raciais daqueles que adotam e revigoram o mito da democracia racial como dogma explicativo da dinâmica social brasileira. Daqueles que tentam estigmatizar mecanismos coletivos de justiça racial como formas de racismo reverso, de racismo contra brancos, no país onde 1% dos homens brancos ricos recebem mais que todas as mulheres negras. Daqueles, por fim, que negam ou limitam a compreensão do racismo a manifestações individuais de discriminação e que até podem repudiar o assassinato de Moïse, congolês brutalmente executado a pauladas no Rio de Janeiro, mas fingem não perceber que a ideologia que o levou a morte é a mesma que orienta as políticas de segurança pública em comunidades periféricas.
Conquistas como essa, sabemos bem, não são pontos de chegada, mas novos pontos de partida para os desafios de outrora que se atualizam. De toda forma, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, agora Constituição, torna-se marco jurídico sem precedentes da luta contra o racismo, ao mesmo tempo que estabelece parâmetros de diálogo mais conectados com a realidade do racismo à brasileira.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S.Paulo.
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