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Vamos aceitar a desmoralização do Direito e do advogado? Até quando?

Vamos aceitar a desmoralização do Direito e do advogado? Até quando?

Sexta-feira acordei cedo. Tomando café, recebo mensagem de Jacinto Coutinho falando de uma grade curricular de uma faculdade de Direito do interior do Maranhão. Não há Direito Constitucional no currículo. Mas há inteligência artificial e quejandos. E há muita quejandice. Assim começou o dia.

Para completar, recebi de outro amigo (eles fazem isso para me irritar cedo da manhã) um texto da ConJur assinado por advogado legal designer (não sabia que na advocacia tinha essa especificidade) em que tecia loas ao legal design e visual law. Uma das coisas que ele disse no artigo fecha com o princípio da simplicidade (sic) inventado pela juíza do Ceará sobre a qual falei aqui. Diz o jus-designer (ver aqui):

“… Todo o conhecimento do mundo (absolutamente todo mesmo!) está disponível através da internet”.

Como assim, caro bacharel? Só se for “através da internet”, atravessando-a. Mas penso que nem “através” e nem “por meio” da internet, caríssimo. Explique-nos de onde tirou essa “informação”, que não é conhecimento, que não é saber e que não é sabedoria. Já começou mal. Outra coisa: se todo o conhecimento (sic), absolutamente todo (sic) está na internet, porque cresce o número de idiotas, néscios e mentecaptos? Não basta acessar a internet? O mundo a um click! Hein?

Nosso jus-designer disse também que:

“Agora o Direito precisa romper os muros que levantou, democratizando a informação, tornando-a inteligível ao leigo, disponibilizando-a de forma simples, objetiva e direta”.

Como assim? Direito é uma disciplina com especificidades. O porteiro do prédio nada sabe sobre isso. Ele não cursou a faculdade. Assim como o jus-designer não entende as coisas da Psicanálise. Nem da Medicina. Compreende?

Direito, como diz Eros Grau, é alográfico. Se o Direito for assim algo “meio autográfico” ou “isomórfico”, convença os médicos e engenheiros. E filósofos. Vai lá e mostra como ensinar Platão com visual law ou “eidos-designer”.

Dizer o que o jus-designer disse é a desmoralização do Direito. É a desmoralização da ciência jurídica. É fazer pouco caso de quem estuda. Quer dizer que o Direito deve ser ensinado ou explicado para qualquer pessoa entender? É mesmo? Genial isso. Prêmio Nobel para o Brasil. Uma revolução no ensino jurídico, é isso? Direito tornado inteligível ao leigo?

Recebi nessa mesma linha uma sentença “explicada” por visual law lá do Paraná. Vejam:

Quer dizer que uma decisão deve ser explicada tipo “Direito para burros” aos réus ou às partes diretamente, sem intermediários? Assim, direto?

Mas pergunto: isso não é tarefa do advogado que defende o cidadão? Isso não é descaso com a figura do advogado? Poxa, chegamos a esse ponto? Sei que isso não é feito com má intenção. Ao contrário. É feito com boníssima intenção. Porém…

A desmoralização da advocacia chegou a esse ponto em que juízes fazem legal designer ou visual law para “comunicar” o que decidiram? É como se na Medicina o exame médico fosse “desenhado” para o paciente, dispensando-se a palavra do médico.

Sim, porque, ao que parece, o advogado é uma figura dispensável. Além de incompetente, porque não consegue explicar ao réu que foi condenado. O que diz a OAB sobre isso? Outra pergunta: por que isso pega tão fácil no Direito? Resposta simples (ups): porque é o locus privilegiado do senso comum. Talvez por isso se diga por aí que, para chumbar na faculdade de Direito, o sujeito precisa ter pistolão…

Como já falei aqui: meu pânico é que isso logo saia do plano da comunicação ao réu para a própria elaboração da sentença. Bom, já vi decisão de preventiva assinalada com (x).

Desculpem minha chatice epistêmica (nada tenho contra o advogado subscritor e aos juízes que adotam esses mecanismos), mas tenho o dever de colocar isso à luz.

Vingando essas teses, já não precisaremos de professores. Tudo deve ser tão simplificado que professores são dispensáveis. Mestrado? Doutorado? Não. O dr. Legal Designer e o dr. Visual Law chegaram para resolver. Legal designer e visual law são coisas tão “profundas” quanto as reportagens de TV. O repórter, para mostrar a enchente, tem de entrar e ficar com a água pelo pescoço. Palavras e coisas… Ah, essa longa história desde a aurora da civilização, agora traduzida por desenhos e quejandos. Triste. Melancólico.

Paremos com isso. Cada um na sua. Como diz a música, tá legal. Eu até aceito o argumento. Mas não me altere o Direito tanto assim.

Quer fazer marqueting? Ok. Mas não fica bulindo com o Direito. Não façam isso. Por favor. Quer fazer tik tok para explicar o ECA para ignorantes? Ok. Mas não me diga que isso é “coisa do Direito”.

Uma pergunta: por que o nosso jus-designer não escreveu seu texto aqui na ConJur usando a “metodologia” que quer vender? Calvos não devem vender remédio para crescer cabelo. Lembram do sujeito que anunciou para o mundo que o livro em papel iria acabar? Pois para dizer isso ele escreveu um livro em papel. Bingo.

Vou sofisticar, para irritação dos simplificadores. Há uma fantasia dos adeptos dessas novas tecnologias que busca repristinar o sonho dos neopositivistas lógicos, que era o de salvar o empirismo. Claro que os legal designers não sabem o que é ou foi o empirismo contemporâneo (que era o outro nome do neopositivismo lógico). Aliás, não dá para explicar o empirismo contemporâneo por visual law ou quejandos. É muitíssimo complexo.

Os neopositivistas buscavam construir uma linguagem lógica para explicar o mundo. Na verdade, já não fala(va)m do mundo; fala(va)m de proposições sobre o mundo. Escrevi muito já sobre isso.

Aliás, Jonathan Swift já fez ironias e sarcasmos sobre isso em 1728. Sim: século 18. Vejam a chegada de Gulliver à academia de Lagado. Está esculpida em carrara a crítica atemporal a quem quer simplificar o mundo ou a linguagem pela qual se diz o mundo. Um dos cientistas da Academia de Ciências de Lagado criou o visual law e o legal designer da época: ele extinguiu as palavras. Bastava mostrar as coisas. Em vez de dizer, mostrava-se a própria coisa. Ou seja: enchente mostra enchente; prisão mostra gtade; multa mostra cifrões… Outro cientista lagadiano inventou o emoji. Nada de fazer frases complexas: tudo vira monossílabo e onomatopeia…

Sigo. Então o jus-designer vem me dizer que temos de tirar a fronteira do estudo técnico cientifico e o trocar pela vulgaridade do simples? Se der certo, dará errado. Desaparece toda e qualquer reflexão jurídica. Vira um Direito ensinado em quadrinhos. Um jus-sertanejo artigo 99 (ou Madureza ginasial) ou Direito tipo ensino técnico IUB (Instituto Universal Brasileiro – Estude na segurança de sua casa, todos os cursos a distância com desconto e até 6x no cartão).

O senso comum venceu. Fracassamos. Derrotados por um empirismo mequetrefe. E o que é empirismo? Ah, isso não é simples. Não dá para visualizar. Tem de ler.

Meu pânico: 2,5 mil anos de Filosofia serão trocados por figurinhas e emojis e coisas do gênero. É isso?

Desafio: expliquem Platão, Aristóteles, Shakespeare, Cervantes, Kelsen por visual law e legal design. Vamos lá. Falem do Crátilo. Ou façam um visual law do meu “Verdade e Consenso”.

Será que no princípio era o emoji? No princípio era o visual law? Pobre João 1,1.

Em síntese: por favor, parem com isso. Fiquem nos limites de sua técnica. Direito não é marqueting. Não estamos em Lagado. Direito, por mais desmoralizado que já esteja por livros resumidinhos e simplificados, ainda não dá para substituir por figurinhas, desenhos e emojis.

Não invadam o espaço da reflexão jurídica. Não substituamos nossa reflexão por algoritmos ou desenhos. Humanos, ainda somos. Como dizia o grande Ruben Alves, que tinha horror ao naturalismo vulgar da literatura:

“O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujos sonhos estão cheios de jardins. O que faz um jardim são os sonhos do jardineiro”.

Sublime, Ruben Alves. Sublime!

E eu pergunto: ainda há espaço para jardineiros no Direito?

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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