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Violência de gênero e invisibilidades

Violência de gênero e invisibilidades

Por Izabella Borges e Cristiana Torres Gonzaga

Em nossa última contribuição para esta coluna, falamos da não violência de Gandhi e da comunicação não violenta — metodologia desenvolvida pelo psicólogo Marshall Rosenberg. Contudo, recente episódio ocorrido no Plenário do Júri de Guarapuava (PR) invoca nova reflexão sobre a frase célebre de Mohandas Gandhi citada naquele texto: “O primeiro princípio da ação não violenta é a não cooperação com qualquer forma de humilhação”.

Isso porque, na ocasião do julgamento de emblemático caso midiático que mobilizou o país pela gravidade das acusações de feminicídio da ex-companheira do réu, o advogado do acusado, em esdrúxula tentativa de simular os fatos levados ao júri, chacoalhou pelo pescoço uma advogada de sua equipe, que chegou a ser empurrada e ficou com marcas da violência em seu pescoço.

A dita simulação, que poderia ter ocorrido por meio de bonecos ou outras formas diversas e inanimadas, traz à tona muito mais do que agressões que chocam os olhos de quem assiste ao vídeo, mostra a violência que permeia as estruturas de linguagem do Poder Judiciário e a alta tolerância a certas formas de violência

Se ainda é comum o discurso de que haveria algum exagero na teoria feminista em sua busca por trazer visibilidade para a discrepância de tratamento baseado no gênero, o episódio referido veio dar exemplo claro de que não existe excesso algum, eis que escancarou, ao usar de violência física e pública, a sutileza da violência passiva, invisível, impregnada nas consciências de mulheres e homens, condicionadas pelo cântico constante do sistema patriarcal, que sussurra aos seus ouvidos uma história de subjugação e menos valia feminina.

A inconsciência coletiva [1] quanto ao nível de violência que permeia a linguagem e o tratamento baseado no gênero se deixou perceber ainda mais quando os protagonistas da dita simulação manifestaram que tudo não passou de uma estratégia de defesa, tendo a colega advogada, inclusive, afirmado seu consentimento na proposta defensiva.

Há na manifestação da colega um exemplo de que as mulheres podem estar submetidas a violências que lhe causam desconforto, dor no corpo e na alma e sequer se deem conta da plenitude de seus direitos e sua dignidade.

Por seu turno, se do outro lado está um homem plenamente consciente de que estaria a ultrajar a dignidade de sua colega de profissão e escritório, não se sabe, mas se pode cogitar que a sofisticada naturalização da violência lhe tenha feito agir sem a percepção de que uma proposta semelhante jamais seria dirigida a um colega advogado.

Ademais, não se pode ignorar que, para além do que se passou entre os profissionais da banca de advogados de defesa, o silêncio institucional que a tudo assistiu — possivelmente também confundido pela névoa produzida pelas crenças patriarcais — selou mais uma situação de violência contra mulher.

Há simbolismos que se constituem como formas de violências invisíveis, menos óbvias. A violência institucional, aquela que ocorre por meio dos próprios mecanismos dos poderes públicos, engendra estruturas que deveriam tornar efetiva a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado democrático de Direito. É por meio da violência simbólica, permeada por práticas que violam os direitos humanos da mulher, que a lógica patriarcal se legitima.

Seja por meio de um veredito que mantém invisíveis certos comportamentos violentos, idealiza as reações da vítima, ou dificulta o acesso à Justiça da mulher em situação de violência, o fato é que há muitas distorções implícitas no cotidiano da atividade jurisdicional, e parte dela consiste em tolerar a violência praticada contra a mulher, desde que não ultrapasse certo limite aceitável, que via de regra costuma encontrar limites na violência mais óbvia e escrachada.

Ao propormos uma abordagem não violenta da atividade jurídica e, especialmente da atividade voltada para a proteção dos direitos humanos das mulheres, assumimos que o ponto de partida deve ser a observação constante e atenta às manifestações sutis da violência arraigada, passiva, normalizada e coletiva para, a partir daí oxigenar a criatividade, coconstruir novos caminhos e proporcionar a escolha de diferentes estratégias para que se efetive a igualdade de gênero, sobretudo transformando os espaços públicos em locais onde, de fato, a posição da mulher seja respeitada.

Pode-se concluir que a concentração de esforços na identificação das violências que permeiam a atuação institucional torna possível a reformulação consciente da linguagem a partir da qual se pretende edificar a imagem da atividade jurídica, garantindo que se revele alinhada com o propósito de efetivação e consolidação de direitos.

Por fim, vale registrar que encontrar formas de erradicar a violência simbólica tão fincada nas estruturas do Judiciário é caminho que precisa ser traçado de maneira estratégica, com a devida qualificação dos agentes estatais que atuam no tratamento e na solução de conflitos [2].


[1] Que, para ser coletiva, se manifesta de algum modo nas histórias pessoais de cada um.

[2] Conforme já tratado nessa coluna em dezembro de 2020, https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/escritos-mulher-violencia-institucional-mulher-abordagem-psicojuridica.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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