Por Marcus Edson de Lima
Com o fim do período ditatorial em nosso país e o processo de redemocratização, foi necessário o advento de uma nova Constituição Federal, uma Carta que rompesse claramente com as arbitrariedades ocorridas naquele período e que resgatasse, entre diversos outros direitos, a democracia e a cidadania do povo brasileiro, principalmente daqueles menos favorecidos.
Com muita luta se instalou a Assembleia Nacional Constituinte no dia 1º de fevereiro de 1987, cumprindo mandamento previsto na Emenda Constitucional 26/85, com o objetivo primordial e essencial de construir um país democrático, mais justo e solidário. No dia 05 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição Federal, e nela, em seu artigo 134, a idealização do que seria uma luta de décadas, a institucionalização da Defensoria Pública no Brasil, instituição autônoma responsável por promover acesso à Justiça para as populações vulnerabilizadas, bem como lutar em juízo ou fora dele em prol daquelas pessoas que mais precisam e menos possuem.
Por óbvio que ali apenas se trazia a vontade do legislador constituinte e da maioria da população brasileira, através de vários mandamentos necessários de serem observados para uma real redemocratização do país, mas necessitando da vontade dos poderes constituídos para, em união de esforços, atingir os objetivos que reverberassem em prol do nosso povo.
Com a Defensoria Pública brasileira não foi diferente: apesar do disposto na Constituição Federal, o caminho não seria fácil e muito menos curto, pois a saga de uma assistência jurídica autônoma, independente, realizada por profissionais capacitados, em órgãos devidamente estruturados, com paridade de armas, longe da ingerência em prol dos mais poderosos, estando em todos os locais do país onde fosse sede do Poder Judiciário, enfim, características mínimas para garantir direitos básicos a toda população vulnerabilizada, tinha seu caminho somente começando.
Importante lembrar que a assistência jurídica gratuita já existia em alguns estados da Federação, porém, não nos moldes trazidos pelo legislador constituinte, que, somente a partir de 1988, começou a ver os estados adequar tais modelos ao modelo constitucional, luta ainda em andamento em todo país.
A título de exemplo, importante trazer o estado do Rio de Janeiro: Conforme se verifica no histórico institucional trazido pela pesquisa nacional da Defensoria Pública, um dos principais banco de dados sobre a instituição existentes na atualidade, a assistência jurídica naquele estado se iniciou a partir do Decreto n.º 2457 de 1897, que criou tais serviços na então Capital Federal.
Posteriormente teve a instituição defensiva diversas outras regulamentações, como a Lei do Ministério Público do Distrito Federal n.º 216/48, na qual trazia a assistência judiciária para os membros do Ministério Público em começo de carreira, bem como diversas outras alterações que mantinham o quadro mais ou menos no mesmo sentido.
Após passar por diversas alterações em seu modelo, com a unificação do estado da Guanabara ao do Rio de Janeiro em 1975, em 1977 foi editada a Lei Complementar n.º 06, desvinculando totalmente dos quadros do Ministério Público a assistência jurídica gratuita e unificando os modelos então existentes, criando quadro próprio e sendo a lei que vigora até hoje no estado Fluminense, claro que com as alterações posteriormente ocorridas e adequado ao novo modelo constitucional.
Após a já mencionada Carta Constitucional de 1988 e as disposições trazidas sobre Defensoria Pública, o grande marco sobre o tema que buscou dar cumprimento em âmbito nacional e deu início a um objetivo a ser perseguido por todos os entes federativos foi a Lei complementar 80 de 12 de janeiro de 1994. O referido texto normativo trouxe normas gerais para a organização das Defensorias Públicas nos Estados e organizou a Defensoria Pública da União.
Importante salientar que alguns estados, ao exemplo do Amazonas, Espírito Santo, Bahia, já possuíam à época lei criadora da Defensoria Pública Estadual, tendo posteriormente seus dispositivos adequados a Lei Complementar federal 80/94 no que atine as diretrizes nela trazidas para os Estados.
Com a referida edição do diploma legal formalmente criando a instituição em âmbito federal e trazendo normas para sua organização nos estados, a obrigação trazida há seis anos pelo legislador constitucional parecia começar a produzir efeitos.
A partir daí começou uma luta incessante para o fortalecimento nos estados em que já existiam qualquer modelo de assistência jurídica integral e gratuita para transformá-lo em Defensoria Pública e de fazer nascer a instituição onde sequer existia, caminho longo e duríssimo, que ainda não teve seu objetivo efetivamente alcançado.
Para demonstrar os efeitos trazidos pela Lei Complementar 80/1994, importante mencionar alguns estados que criaram a partir de então suas Defensorias Públicas e o grande lapso de tempo entre uns e outros, senão vejamos a título exemplificativo:
Rondônia: Lei Complementar Estadual 117/94 cria e regulamenta a instituição no estado, porém, somente em 2001 teve sua efetiva instalação e efetivação com a posse dos primeiros membros oriundos do quadro de assistentes jurídicos do estado e que exerciam funções compatíveis com a de defensores e defensoras públicas;
São Paulo: Lei Complementar Estadual 988/06 que cria e regulamenta a Defensoria Pública estadual, após forte pressão popular e de movimentos sociais que desde 2002 criou o chamado “movimento pela criação da Defensoria Pública”;
Espírito Santo: Lei Complementar Estadual 28/92 criou a Defensoria Pública naquele estado, mas a Lei Complementar 55/94 criou a lei orgânica da instituição e que vigora até a atualidade;
Paraná: Lei Complementar Estadual 136/11 que cria e regulamenta a instituição no estado;
Santa Catarina: Lei Complementar Estadual 575/12 que cria e regulamenta a instituição no estado e;
Amapá: Lei Complementar Estadual 86/14 criou a instituição no estado, na tentativa de romper com serviços prestados de assistência jurídica integral e gratuita por advogados dativos ou comissionados, diversamente como mandava o disposto na Constituição Federal. Ocorre que somente em 2019 foram empossados (as) os primeiros (as) membros da carreira nos moldes constitucionais após aprovação em concurso de provas e títulos, sendo este o marco inicial da carreira no estado, o último a implementar.
Trazidos os exemplos acima citados, se verifica o quão importante as regulamentações constitucional e legal para buscar a implementação e efetivação de mais esse direito básico as pessoas menos favorecidas de nosso país, bem como o quão lenta e dificultosa é a luta para viabilizar o direito a elas de terem direitos e poderem buscar, efetivamente, a implementação deles.
De nada adiantaria uma Carta Constitucional denominada de cidadã, restabelecendo diversos direitos perdidos em tempos da ditadura e em meio a graves violações de direitos humanos, se não fossem disponibilizados instrumentos para a viabilização concreta destes. Criá-los sem possibilitar exercê-los, seria meramente uma letra morta, por isso a necessidade de fortalecimento de uma instituição para isso, bem como de forma independente e autônoma.
Ainda assim, mesmo após o advento da Lei Complementar federal n.º 80 de 1994, muito havia que se percorrer para um verdadeiro fortalecimento das Defensorias Públicas, e, nesse sentido, um outro grande e importante passo foi dado em prol das Defensorias Públicas estaduais no ano de 2004, quando foi acrescentado no artigo 134 da Constituição Federal, o parágrafo 2º, que trouxe a autonomia funcional e administrativa para a instituição, bem como iniciativa de sua proposta orçamentária, feito muito significativo e comemorado pela carreira.
Passo dado, as desigualdades entre as Defensorias Públicas e as outras carreiras do sistema de Justiça continuaram a serem absurdas, gigantescas, tendo unidades federativas que sequer, em 2004, contavam com Defensoria Pública instalada, a exemplo de São Paulo, como já mencionado, Paraná, Santa Catarina e Amapá, que surgiu, efetivamente, como já dito, somente em 2019.
Dentre as diversas desigualdades interinstitucionais existentes, como orçamentária, número de membros, quadros de apoio, estrutura, subsídios e diversas outras, uma das mais importantes e que não advém de uma visão corporativista é a ausência das Defensorias Públicas em diversas comarcas do país. Isso mesmo, na maioria dos lugares onde existem juízes, promotores, sequer há um defensor ou defensora pública para atender a população menos favorecida e vulnerabilizada.
Com intuito de suprir essa deficiência e seguir na luta iniciada lá em 1988 com a previsão constitucional da Defensoria Pública, caminhada essa trazida no decorrer deste texto
de forma reduzida, no ano de 2014 o Poder Legislativo andou bem, ainda que tardiamente, mas tomou providências no sentido de promulgar a Emenda Constitucional de número 80, a qual merece um destaque no que tange a intenção do legislador de acabar, de uma vez por todas, com essa trajetória aparentemente sem fim e implementar, de uma vez por todas, a Defensoria Pública em todas as comarcas do país, garantindo efetivamente todos os direitos trazidos pelo legislador constituinte originário.
A referida emenda constitucional, que ficou conhecida no momento ainda de sua proposta como PEC das comarcas, trouxe grande avanço legislativo ao prever que em um prazo de oito anos, a contar da promulgação da referida emenda constitucional, os estados e o Distrito Federal deverão contar com defensoras e defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, e enquanto isso não se conclui, durante esse prazo as lotações devem ocorrer prioritariamente a atender as regiões de maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.
Com essa alteração constitucional parecia enfim que a luta por uma instituição sólida, efetivamente autônoma, e atuando em todos os lugares onde as pessoas pobres e vulnerabilizadas estão, teria um término vitorioso. Concluiu-se e comemorou-se o fato de que no ano de 2022 os sonhos traçados lá atrás, em 1988 pelo legislador constituinte, estariam alcançados e realizados, e toda essa luta narrada no decorrer do texto para fazer valer efetivamente os direitos das pessoas pobres, periféricas e de qualquer forma excluídas, estaria tendo um final feliz e de vitória.
Chegado o ano de 2022 e as notícias não foram as melhores: a maior parte dos estados brasileiros possuía um déficit gigantesco no número de defensoras e defensores públicos, e, em plena pandemia, constatou-se claramente um verdadeiro paradoxo, qual seja, a essencialidade da instituição e, ao mesmo tempo, o completo descaso com ela na maioria dos estados brasileiros em um momento em que se depara com os desafios de uma pandemia mundial e o fim do prazo dado pelo legislador constituinte derivado para efetivar a emenda constitucional 80/14.
Para se ter uma idéia do quão longe estamos para realmente atingir o que manda o texto constitucional, passamos a exemplificar com a realidade de alguns estados da Federação, trazendo o número de comarcas e em quantos a Defensoria Pública atua, bem como o número de membros dos Tribunais de Justiças e Ministérios Públicos, senão vejamos:
Conforme a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública, em São Paulo, sudeste do país, maior e mais populoso estado de nossa Federação, existem 320 comarcas, sendo que a Defensoria Pública se encontra instalada em apenas 44 delas. Um verdadeiro absurdo e descaso com a população pobre e necessitada da unidade federativa. Verifica-se também que enquanto o Ministério Público Estadual possui 1963 membros, o Tribunal de Justiça 2620, a Defensoria Pública do mesmo Estado possui apenas 771, número infinitamente inferior para minimamente garantirmos de forma democrática o acesso à justiça de forma digna e como manda a Constituição Federal.
Já no Estado do Pará, norte do país, com intuito de demonstrar que em todas as regiões do país o quadro é idêntico, temos um total de 113 comarcas, sendo que a Defensoria Pública está em apenas 53 deles, ficando a população carente e vulnerabilizada de 60 delas sem atendimento pela instituição. Ainda neste estado, o número de membros do Poder Judiciário é de 325, do Ministério Público 333 e da Defensoria Pública o inferior número de 243 membros.
Pelo nordeste podemos exemplificar com o estado da Bahia, onde o descumprimento da norma constitucional é gritante e desumano, senão vejamos: das 203 comarcas instaladas no estado, apenas 41 contam com unidades da Defensoria Pública baiana, e, enquanto tem-se um total de 572 magistrados (as), 501 promotores (as), possuem apenas 368 membros da instituição defensiva.
Enquanto isso, no sul do país, mais especificamente em Santa Catarina, das 111 comarcas existentes no estado, apenas 24 contam com os serviços da instituição, em um total de 532 membros do Tribunal de Justiça, 482 do Ministério Público e apenas 114 da tão sofrida Defensoria Pública.
Trazidos tais dados, pergunta-se: após tantas lutas desde 1988, o que vem sendo feito para cumprir o mandamento constitucional para termos uma instituição forte, autônoma e efetivamente estruturada, para a defesa da população mais pobre e vulnerabilizada? Após a não observância do que dispôs a Emenda Constitucional 80/14 pelos poderes constituídos dos estados federativos e pela União, o que vem sendo feito para a mudança desse cenário e qual o quadro que se avizinha? Por incrível que pareça, as respostas as tais perguntas trazem mais medos do que esperanças, senão vejamos:
Diante de tanta omissão do Estado brasileiro em implementar uma política pública de cidadania às pessoas mais pobres e vulneráveis, como um verdadeiro instrumento de inclusão social através do acesso à justiça, verifica-se um fenômeno pior que o simples descaso, a opção na prática de um modelo diverso da opção constitucional.
Um exemplo do acima mencionado se extrai do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 279, em que a maioria do Supremo Tribunal Federal entendeu que os municípios podem criar instrumentos de assistência jurídica integral e gratuita, inclusive com o argumento de que a assistência prestada pelas defensorias públicas é insuficiente.
A referida ADPF foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República contra dispositivos de uma lei do município de Diadema, Estado de São Paulo, que criou a assistência jurídica municipal naquela localidade. Em sustentação oral na sessão de julgamento o representante do Ministério Público Federal defendeu a incompatibilidade da defensoria municipal com a Constituição Federal, porém entendeu que a oferta de assistência jurídica às pessoas mais necessitadas não é monopólio da União e dos estados, podendo haver mais de um canal de atendimento, o que amplia e potencializa o direito de defesa.
Com o argumento de insuficiência de estrutura física e de pessoal das Defensorias Públicas, o município teve sua tese acolhida de que na verdade não se trata de substituição daquele órgão estatal, mas somente uma forma de suplementar o que não é conseguido pela instituição de estado.
Entendeu a Ministra relatora Carmem Lucia que em nenhum estado da Federação as Defensorias Públicas possuem condições de atender a todas as demandas das populações locais, podendo o ente federativo auxiliar neste sentido com a finalidade de cumprir outro mandamento constitucional, qual seja, de que toda pessoa tenha garantido o direito de assistência jurídica integral e gratuita.
Mais uma vez se evidência que o Estado brasileiro não cumpre os mandamentos constitucionais de fortalecer as Defensorias Públicas em todas as unidades jurisdicionais, e, além da escancarada omissão, encoraja modelos diversos e completamente dissociados da realidade constitucional, causando efeito reverso de enfraquecimento das estruturas institucionais das Defensorias Públicas brasileiras.
Para verificar esse encorajamento acima citado, basta ver o número de municípios que criaram assistência jurídica municipal após a decisão da ADPF 279, conforme se extrai, exemplificativamente, do observatório das defensorias municipais do Conselho Nacional das
Defensoras e Defensores Públicos Gerais, Condege, colegiado que reúne todas e todos os Defensores Públicos-Gerais do País.
Segundo o referido estudo, verifica-se a seguinte realidade de surgimento de iniciativas para criação de assistência jurídica integral e gratuita pelos municípios, o que faz com que distancie ainda mais do cumprimento e da efetivação de um país em que a referida missão seja prestada por um órgão determinado na Constituição Federal:
No estado do Alagoas surgiram, após o referido julgamento, em três municípios, quais sejam, Maceió, Pilar e Teotônio Vilela.
Já no estado da Bahia, verifica-se até a presente data que mais quatro municípios criaram após a decisão os referidos serviços, sendo Alagoinhas, Itarantim, Salvador e Santa Brígida, constando ainda que mais quatro já o possuíam antes da decisão e são, Caetité, Camaçari, Caravelas e Formosa do Rio Preto, totalizando oito municípios.
No Ceará os municípios de Alto Santo, Choró, e Mauriti criaram também após a decisão do Supremo Tribunal Federal, se juntando aos municípios de Aratuba, Jardim e São Benedito, que já instalaram anteriormente.
Da mesma forma os municípios de Anchieta e Pedro Canário, no Espírito Santo, seguiram a mesma linha, se somando aos municípios de Conceição do Castelo e Serra, que existiam anteriormente,
No Mato Grosso do Sul foi iniciado estudos para criação no município de Dourados no ano de 2022.
Em Minas Gerais, vários são os municípios com estudos e projetos para a implementação, como por exemplo em Juiz de Fora, Riacho dos Machados, Três Corações, como também já foi criado em alguns outros, a exemplo de João Monlevade e Lagoa Grande.
Poderíamos trazer inúmeros exemplos da repercussão negativa da referida decisão no sentido de inibir o fortalecimento das Defensorias Públicas em todo país, visto a gigantesca proliferação da idéia de forma muito rápida, mas, ainda que de forma exemplificativa, dá pra se ter uma idéia do tamanho da missão institucional e da importância de que, com o efetivo cumprimento da Emenda Constitucional 80/14, a instituição chegue rapidamente e de forma estruturada em todas as comarcas de nosso Brasil.
Outra evidente afronta a nossa Constituição é a proliferação de modelos de advocacia dativa em suprimento ao número exíguo de defensores e defensoras pelo país. A cada dia se percebe um movimento no sentido de transferir ao setor privado a responsabilidade do setor público, violando, a nosso ver, o que diz nossa Constituição Federal.
Em 2023 foi lançada pela Ordem dos Advogados do Brasil a chamada Carta de Florianópolis, documento oriundo da reunião do Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil no dia 24 de março do citado ano, e, dentre as inúmeras decisões, duas delas se referem exatamente a busca de fortalecimento da advocacia dativa, o que vai, a nosso ver, exatamente no sentido contrário do que se busca no cumprimento da Constituição Federal com o fortalecimento de uma instituição estatal. As duas determinações mencionadas são as abaixo, as quais foram extraídas do próprio texto do documento:
1° Ressaltar a importância da advocacia dativa em todo o país, reforçando a necessidade de fixar requisitos mínimos que assegurem a transparência nas nomeações, eficiência nos pagamentos e valorização dos honorários, respeitada a autonomia das Seccionais quanto às peculiaridades de cada região.
2° Criar a Coordenação Nacional de Promoção da Advocacia Dativa, com o objetivo de promover estudos, coordenação e sua sistematização em âmbito nacional, estabelecendo como meta inicial a realização de uma caravana nacional, além da expedição de ofícios direcionados a todos os Tribunais de Justiça dos Estados, Governadores e Assembleias Legislativas, relatando a necessidade de regulamentação da advocacia dativa.2
Diante das decisões supracitadas do importante colegiado de classe de uma instituição essencial para o regime democrático como a Ordem dos Advogados do Brasil, verifica-se claramente uma política institucional de fortalecimento de instrumentos diversos do que aqui defendemos como modelo constitucional, distanciando todo o sistema de justiça da busca para a efetivação e cumprimento da Emenda Constitucional 80/14, o que tem como fundamento exatamente a não presença das Defensorias Públicas em todas as comarcas do país, como deveria ser.
Portanto, conclui-se que o fundamento usado para a criação desses modelos alternativos de assistência jurídica integral e gratuita é justamente aquilo que se deveria querer evitar, e, ao invés de servir de base para a o fortalecimento de outras políticas, deveria ser motivo de apoio às Defensorias Públicas para sua real interiorização e fortalecimento.
2 Carta Final do Colégio de Presidentes da OAB em Florianópolis. Março de 2023.
Além disso, o grande problema desse modelo é a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, ao invés de aparelhar um órgão de estado com atribuições constitucionais para a missão.
Como dito há pouco, o interessante é que em todos os casos os argumentos utilizados, seja pelo Judiciário, seja pelas instituições privadas que optam por modelos diversos do previsto na Emenda Constitucional 80/94, é a utilização do próprio déficit de membros das Defensorias como fator determinante de sucateamento da própria Defensoria. Explico: não se aparelha a instituição com a finalidade de fortalecê-la com mais estrutura de pessoal e física em todas as comarcas brasileiras e utilizam o fato dela não estar em todas as comarcas de forma estruturada como motivo para o nascimento de outros modelos de assistência jurídica integral e gratuita, o que não pode ser admitido.
Sendo assim, diante de uma lógica quase que ilógica, vai sendo descumprida a Constituição Federal e a população pobre sofrendo em seus direitos mais básicos, quais sejam, do direito a ter direito e de poder se socorrer desses direitos através de uma instituição de estado séria, vocacionada e nascida constitucionalmente para isso.
Importante verificar que a cada passo dado para a criação de arremedos e paliativos de assistência jurídica integral e gratuita a população menos favorecida, mais os poderes constituídos e com a missão constitucional de efetivamente instituir e fortalecer as Defensorias Públicas no país se distanciam do seu mister e dão indicativos de uma luta perdida, ou a pretensão de, de forma covarde e dissimulada, abandoná-la e, através de uma sabotagem a si próprios, fingirem cumprir seus papéis de forma legal e constitucional.
Numa analogia a outras missões constitucionais em que os poderes constituídos simplesmente não conseguiram realizar o que deveriam e fazem com que grupos sociais e instituições se enveredem por caminhos mais curtos e que destoam completamente do que quis o legislador constituinte ao elaborar a Carta de 1988, temos que o que se faz com as Defensorias Públicas equivale, guardadas as devidas proporções, ao fracasso na implantação de políticas públicas determinadas pela constituição às crianças e adolescentes em nosso país.
Para melhor ilustrar, passo a expor: A Constituição Federal de 1988 trouxe um olhar diferenciado às crianças e adolescentes, enxergando nesse grupo de pessoas sujeitas de direitos, uma forte carga de necessária proteção e cuidados, bem como de proteção. Após a previsão constitucional veio o chamado Estatuto da Criança e Adolescente, reforçando o mandamento e buscando ainda mais trazer normas protetivas a aquele grupo vulnerável.
Assim como com o que aconteceu com o fenômeno aqui retratado de luta para fortalecimento e implementação efetiva de um mandamento constitucional, lá também começou a se perceber, após anos de muita dedicação em prol da proteção daqueles direitos, um forte movimento contrário e que evidencia a incompetência estatal, tendo em vista que hoje o que mais se discute na sociedade, em parte dos movimentos sociais, nas casas do Congresso Nacional, em toda a classe política e em diversos outros espaços, é a redução da maioridade penal. Tal tema, quando dissociado de um mínimo de realidade e acompanhado de um pensamento retrógrado e punitivista, o qual até hoje já se demonstrou em nada servir em nosso país, pode seduzir e levar a tremendos enganos, os quais podem, ao contrário de solucionar o problema da violência, trazer muitas outras formas dela.
Tendo em vista que não é objeto deste trabalho querer discutir tal tema, mas somente demonstrar a mesma lógica ocorrida no ponto central de nosso debate, verifica-se no caso das crianças e adolescentes que tem-se o mandamento constitucional, passam anos discutindo o cumprimento daquela disposição, criam-se mecanismos para isso, bem como leis, e, ao final ou no caminho, o Estado brasileiro falha, e ao falhar nega educação, alimentação, saúde, condições mínimas de vida as crianças e adolescentes mais carentes, abandonando-as à própria sorte, tendo como consequência a perda dessas pessoas para a criminalidade. Após punir por anos tais menores com as omissões do Estado e da sociedade, eles mesmos discutem reduzir a maioridade penal e novamente punir aquelas crianças e adolescentes vítimas deles próprios.
Fazemos tais divagações para mostrar isso, ou seja, a corriqueira prática do Estado e sociedade brasileira em que, quando obrigados pela Constituição Federal e pelas leis de promover um direito humano, ao invés de buscar o resultado que mais se adequa ao mandamento constitucional, procura o meio mais fácil e que traz uma aparência de resolução, mas que no fundo, por razões óbvias e em uma análise um pouco mais do que superficial, claramente se trata de um arremedo com aparência de solução.
A grande curiosidade e característica de todos os casos em que isso acontece é que há uma tremenda e triste “coincidência”, qual seja, sempre se trata de direitos humanos de pessoas pobres, vulnerabilizadas e de que dependem do poder público quase que para sua existência.
Inevitável concordar que tais arremedos de assistência jurídica integral e gratuita poderiam existir com o argumento de que todas as pessoas merecem ter tal atendimento e a Defensoria Pública não conseguiria realizá-lo, porém, dentro do prazo estabelecido pelo legislador constituinte derivado na emenda 80/14, em um prazo de oito anos, tempo em que gradativamente as Defensorias Públicas deveriam cada vez mais se fortalecerem, aumentarem seus atendimentos aos interiores dos estados e em todo país, e na proporção inversa, tais modelos paliativos irem se desestruturando.
Tendo em vista que o tempo já passou e tais missões não foram cumpridas no prazo estabelecido pela referida norma constitucional, em hipótese alguma deve se cogitar atos contrários ao estabelecimento definitivo das Defensorias Públicas no modelo traçado constitucionalmente, mas sim execrarmos qualquer movimento nesse sentido e exponencialmente aumentar os esforços em prol do cumprimento da Emenda Constitucional 80/14 e todos os demais dispositivos já citados, não devendo ser uma missão e luta só das Defensorias Públicas, mas também de toda a sociedade que se diz preocupada com as populações menos favorecidas, das instituições constituídas de Estado, dos poderes de Estado, bem como de todas as carreiras do Sistema de Justiça.
Não se trata de uma luta classista ou corporativista, mas sim de uma luta constitucional de direitos humanos efetivos em prol da população mais pobre de nosso país, das populações vulnerabilizadas como indígenas, lgbtqiapn+, quilombolas, negras, privadas de liberdade, periféricas, enfim, todas aquelas pessoas que precisam de seu direito a ter direito e que pouco tem além da esperança em uma Defensoria Pública forte, sem a qual não há como se falar em cidadania e efetiva democracia.
Após analisarmos todo esse quadro mencionado e os sucessivos descumprimentos dos mandamentos constitucionais no que atine a assistência jurídica integral e gratuita de forma autônoma, eficaz e em todas as comarcas do país, feita pelas Defensorias Públicas dos estados, Distrito Federal e União, tem-se como importante que o poder público se conscientize e busque, de forma efetiva e urgente, já que o prazo de oito anos para o cumprimento se esgotou no ano de 2022, o fazendo de forma cogente e impondo metas aos demais poderes, sob pena de perpetuarmos a omissão de estabelecimento de um direito básico a população mais carente de nosso país.
Uma iniciativa importante nessa direção foi a criação, no dia 14 de março de 2023, da Frente Parlamentar pela Defensoria Pública, que, segundo o artigo 1.º de seu estatuto, é uma associação civil constituída no âmbito do Congresso Nacional, de interesse público e composta por parlamentares das duas casas e sem fins lucrativos.
A idéia da referida frente parlamentar é o apoio e fortalecimento das Defensorias Públicas estaduais, do Distrito Federal e da União, e para isso estabelece formas de atuações nas Assembléias Legislativas dos Estados, na câmara distrital e nas câmaras municipais, sempre com intento de ampliar a instituição e fortalecer a prestação de seus serviços.
Tal iniciativa deverá, junto com demais forças, reforçar o cumprimento dos mandamentos constitucionais ao invés de enfraquecê-los com paliativos e meios alternativos que não o determinado pelo legislador constituinte.
Sendo assim, acreditamos que somente com a conscientização da classe política da importância das Defensorias Públicas, com a união das instituições do Sistema de Justiça e com o fim da hipocrisia dos discursos em favor da instituição sem nenhuma postura proativa para seu real acontecimento, ou pior, agindo de forma contrária a que possibilite tal concretização, é que teremos uma sociedade real e efetivamente representada em seus direitos, seja judicial ou extrajudicialmente.
Para a classe dos defensores e defensoras públicas pensamos que temos a missão de diuturnamente mostrar a referida essencialidade, buscando otimizar o material humano e nos aproximarmos cada vez mais da população carente de nosso país, abandonando os gabinetes e indo de encontro ao povo, bem como termos pautas menos corporativistas e muito mais em prol da população que é a razão de nossa existência.
Por fim, aos gestores institucionais é essencial a responsabilidade em empregar orçamento de forma a possibilitar o crescimento do número de membros e buscar cumprir exatamente o que diz a Emenda 80/14 quanto a criação de novas titularidades e núcleos, principalmente no que atine as novas lotações.
A luta é grande e a missão muito árdua, mas com a conjugação de todos esses esforços e a união em prol desse objetivo por todos os atores citados neste texto, ela se tornará possível e ganhará a população pobre e vulnerabilizada de nosso país, e, para isso, precisamos todos e todas fazermos nosso trabalho de conscientização e busca por tal objetivo.
Não há como falar em cidadania plena e uma verdadeira democracia sem uma Defensoria Pública autônoma, forte e presente em todos os rincões de nosso Brasil. Essa deve ser nossa missão e, quem defende um país igualitário e justo necessariamente tem que se aliar a esse objetivo, sob pena de mera retórica.
Comemorar uma Constituição Federal democrática e a chamá-la de cidadã passa necessariamente por defendê-la para todas as pessoas, e não somente para um grupo de privilegiados e privilegiadas.
Viva a Constituição Federal e viva a Defensoria Pública de nosso Brasil!!
Referências:
ADPF 279. Supremo Tribunal Federal. 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4425193> Acesso em 23 de maio de 2023.
Carta Final do Colégio de Presidentes da OAB em Florianópolis. OAB Nacional. 2023. Disponível em: <https://www.oab.org.br/noticia/60845/confira-a-carta-final-do-colegio-depresidentes-da-oab-em-florianopolis-sc> Acesso em 23 de maio de 2023.
Condege participa de lançamento da Frente Parlamentar em apoio à Defensoria Pública. 2023. Disponível em: <http://condege.org.br/arquivos/3666> Acesso em 23 de maio de 2023.
Estatuto da Frente Parlamentar Mista de Apoio e Fortalecimento das Defensorias Públicas dos Estados e da União. Câmara dos Deputados. Gabinete da Deputada Antônia Lúcia.
MATOS, Oleno Inácio de. Coordenador. Observatório da Assistência Jurídica Gratuita Municipal. Apresentação de dados da pesquisa em maio de 2023.
Pesquisa Nacional da Defensoria Pública. 2023. Disponível em: <https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/> Acesso em 23 de maio de 2023.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *