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A imprensa que vê Zelensky santo e pacifista depreda boa entrevista de Lula

A imprensa que vê Zelensky santo e pacifista depreda boa entrevista de Lula

Por Reinaldo Azevedo

A entrevista de Lula à revista americana Time vai muito além do “botão quente” eleitoral acionado pela imprensa brasileira: guerra Rússia-Ucrânia. A íntegra em português está aqui. E talvez seja conveniente que você decida ler por sua conta em vez de permitir que a leiam por você. O curioso é que os que mais se escandalizam com as afirmações de Lula — com as quais, de resto, concordo, deixo claro — são os mesmos que afirmam ser o troço irrelevante porque a publicação não teria mais importância. Sendo assim, deveriam se ocupar de outro assunto.

A opinião de Lula sobre a guerra não coincide com a de Bolsonaro, que jamais condenou a invasão ilegal da Ucrânia. E assim é porque, na mística da extrema direita internacionalista, ora vejam!, Putin é uma figura de relevo. E não por suas supostas tentações expansionistas, mas por dar apoio a extremistas de direita de viés nacionalista.

O petista condenou a invasão, mas lembrou o óbvio: ninguém trava sozinho uma guerra. Indaga quais as razões alegadas por Putin. Expansão da Otan? Pretensão da Ucrânia de integrar a União Europeia? E fez ali o que deveria ser o bê-á-bá das relações internacionais. Referindo-se aos atores do conflito, afirmou: “As conversas foram muito poucas. Se você quer paz, você tem que ter paciência. Eles poderiam ter sentado numa mesa de negociação e passado 10 dias, 15 dias, 20 dias, um mês discutindo para tentar encontrar a solução. Então eu acho que o diálogo só dá certo quando ele é levado a sério.”

Está certo. Também criticou a atuação dos Estados Unidos e União Europeia. Alguém, com um mínimo de objetividade, diria que atuam para pôr fim ao conflito? E aí vem o trecho que está servindo à exploração eleitoreira:
“E agora, às vezes fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin. Ele é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado. O Saddam Hussein era tão culpado quanto o Bush. Porque o Saddam Hussein poderia ter dito: ‘Pode vir aqui visitar e eu vou provar que eu não tenho armas’. Ele ficou mentindo para o seu povo. Agora, esse presidente da Ucrânia poderia ter dito: ‘Olha, vamos deixar para discutir esse negócio da OTAN e esse negócio da Europa mais para frente. Vamos primeiro conversar um pouco mais.”.

É o sensato. Mas, para tanto, é preciso que não se considere que a luta se dá contra o demônio, que pretenderia restaurar o antigo império soviético. Como resta evidente, isso é propaganda belicista dos Estados Unidos e da Otan. Nessa trilha, morremos todos. A observação sobre Saddam Hussein, que não tinha as armas químicas que dava a entender que tinha, está correta, e o paralelismo estabelecido por Lula faz sentido.

Qual é o único erro do ex-presidente? Ter-se estendido sobre um tema que se transformou numa bolha gigantesca de desinformação e mistificação mundo afora. Criticou Zelensky, que é tratado como artista pop. E resolveu ir contra o consenso da imprensa ocidental, cuja militância anti-Putin — ainda que por bons motivos — ignora consequências e riscos. A sequência de perguntas deixa claro que a jornalista discorda das afirmações feitas pelo ex-presidente, mas notem que o tema nem foi parar na abertura da entrevista. Ou porque as respostas podem ter sido consideradas satisfatórias ou porque há falas mais relevantes. E as há.

Lula falou com absoluta correção sobre a necessidade de reconstruir, ou que verbo se empregue com sentido semelhante, a ONU. E não o fez, basta ler a resposta inteira, para desmoralizar a organização. E com nova censura a Putin, mas não só a ele, é verdade:
“É urgente e é preciso a gente criar uma nova governança mundial. A ONU de hoje não representa mais nada. A ONU de hoje não é levada a sério pelos governantes. Porque cada um toma decisão sem respeitar a ONU. O Putin invadiu a Ucrânia de forma unilateral, sem consultar a ONU. Os Estados Unidos costumam invadir os países sem conversar com ninguém e sem respeitar o Conselho de Segurança. Então é preciso que a gente reconstrua a ONU, coloque mais países, envolva mais pessoas. Se a gente fizer isso, a gente começa a melhorar o mundo.

O que há de errado no que vai acima?

A repórter quis saber:
“Muitas pessoas no Brasil dizem que houve muitas encarnações do Lula, especificamente em política econômica. Qual Lula temos hoje?”

Convenham: em último caso, trata-se de saber por que, em certos segmentos do mercado, busca-se demonizar a candidatura do petista. A resposta foi esta:
Eu sou o único candidato com quem as pessoas não deveriam ter essa preocupação, porque eu já fui presidente duas vezes. E a gente não discute política econômica antes de ganhar as eleições. Primeiro você precisa ganhar para depois saber com quem você vai compor e o que você vai fazer. Quem tiver dúvida sobre mim olhe o que aconteceu nesse país quando eu fui presidente da República: o crescimento do mercado. O Brasil tinha dois IPOs. No meu governo fizemos 250 IPOs. O Brasil devia 30 bilhões, o Brasil passou a ser credor do FMI, porque emprestamos 15 bilhões. O Brasil não tinha um dólar de reserva internacional, o Brasil tem hoje 370 bilhões de dólares de reserva internacional. […] Então as pessoas precisam ter em conta o seguinte: ao invés de perguntar o que é que eu vou fazer, olhe o que eu fiz.

Daqui a pouco aparece alguém para dizer que os números não são bem esses. É inequívoco, por exemplo, que, dados os seis últimos presidentes, a maior variação positiva do Ibovespa se deu nos oito anos de seu governo, quando o país passou à condição, adicione-se, de grau de investimento. E aí se deu o desastre econômico do governo Dilma, o que também é real.

A resposta diz o óbvio: por que o mercado o temeria? “Ah, tem a questão do teto de gastos…” Parece que Bolsonaro já se encarregou de desmoralizá-lo.

Bem, resta ler a entrevista. Talvez o Brasil realmente não mereça ter um presidente que afirma:
“Eu fiquei 580 dias na cadeia. Eu li muito. Então eu fiz muita reflexão, eu me preparei para sair da cadeia sem ódio, sem mágoa, sem ressentimento, apenas lembrando que aquilo foi um processo histórico que eu não posso esquecer. Eu não posso esquecer, mas eu não posso colocar na mesa esse assunto todo dia porque é uma coisa do passado. Eu quero pensar no futuro.”

Pois é… E pensar que há fardados assombrando as eleições, revivendo em notas os fantasmas de 1964…

Nota: a entrevista foi concedia no fim de março. Há mais de um mês.

Artigo publicado originalmente no UOL.

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