O planeta enfrenta uma das piores pandemias dos últimos 100 anos. A ciência, a medicina e os organismos internacionais recomendam o máximo isolamento possível. Há necessidade de união, de trégua nas divergências políticas, e, por questão de saúde pública, não deveríamos ter manifestações de rua.
Contudo, apenas no Brasil, elas são estimuladas por quem mais deveria evitá-las: o presidente da República, que, semanalmente, comparece a manifestações contra os outros poderes e a favor de golpe militar. Sejamos sérios, não existe intervenção militar constitucional. Ele repete incessantemente ameaças ao STF, estimula diariamente o menosprezo à covid-19 e mente sobre um medicamento milagroso, a cloroquina, enquanto não temos nem ministro da Saúde. Assim, clama que seus apoiadores ocupem as ruas.
E há os estímulos indiretos. Suas condutas são, corretamente, interpretadas como ataques à democracia. O presidente, que antes de ser eleito homenageara torturadores e milicianos, reclamara que a ditadura militar matou pouca gente, defendera fechamento do Congresso e investira contra direitos humanos, mulheres, indígenas, homossexuais, quilombolas, artistas, professores, etc., parece fazer questão de lembrar que permanece coerente com sua história.
É rotina dele gritar “cala a boca!” para jornalistas ou “acabou, p…!” para ministros do STF. É comum vê-lo, ou aos seus ministros e apoiadores, usando símbolos, estética e linguagem nazistas, como no episódio do ex-secretário da Cultura emulando Goebels,no slogan “Brasil acima de todos”, cópia do “Alemanha acima de todos” e nas bandeiras da extrema direita ucraniana nos atos que apoia. Viraram corriqueiras as referências racistas, como a “brincadeira” com os copos de leite e a manifestação de pessoas brancas com máscaras e tochas na mão, imitando a Ku Klux Klan, para ameaçar o STF. Nem precisa falar sobre as louvações à ditadura militar, porque sempre foram abertas.
Um outro nível de ameaça à democracia vem sendo pouco comentado. O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro tentou aprovar lei que estimulava a letalidade policial e propôs colocar presos em contêiners. Antes, apoiara redução de direito de defesa e legitimação de provas ilícitas. Direito penal autoritário e prisões em massa, casam com governos autoritários e são condição para as políticas econômicas mais insensíveis.
Paulo Guedes, na famigerada reunião divulgada pelo STF, expôs um plano de exclusão dos pobres e de redução da atuação social do Estado, no momento em que a população mais precisará de apoio. Novamente louvou o Chile de Pinochet. Declarou que o governo só deveria ajudar as grandes empresas. As pequenas, não. Afirmou que estava colocando uma granada no bolso do servidor público. Porém, é fácil identificar seu verdadeiro inimigo, por trás dos ataques ao Estado social, aos pequenos empresários e aos servidores públicos: o cidadão pobre.
A proposta apresentada pelo ministro só é viável em regimes autoritários e excludentes. Guedes sugeriu contratar milhões de pessoas para servir o exército e, assim, trabalhar em obras, recebendo R$200,00 mensais. Pelo plano, o Estado (ou grandes empresas) só precisaria pagar 20% do salário mínimo para operários. É claro que isto somente funciona quando há gente suficiente na mais absoluta miséria. Para completar, a explosão de pobreza seria acompanhada de redução do Estado e, consequentemente do SUS, da Defensoria Pública, do INSS, dos abrigos, etc.
Com tantos estímulos, ou provocações, natural que ocorresse uma manifestação de rua pró-democracia, como a do último domingo, organizada por torcidas de futebol em São Paulo. E o confronto entre os novos manifestantes e o grupo que apoia as ideias do presidente traz um reforço à preocupação: segundo a Polícia, após a turma pró-Bolsonaro provocar a outra com bandeiras neonazistas, os militares entraram em confronto, mas com o grupo provocado.
É possível que o período contemporâneo do Brasil venha a ser conhecido como a Longa Noite. Não sabemos se ela durará dois, quatro ou oito anos. Talvez, as manifestações pró-democracia não devessem acontecer porque os conflitos parecem ser desejados pelo presidente. Talvez, porque as passeatas favorecem a expansão da doença, outro claro objeto de desejo dele. Mas, diante de um quadro tão trágico e claro, Bolsonaro, sua equipe e seus apoiadores deixam alguma alternativa para pobres e democratas?
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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